30 de novembro de 2010

Otimismo


      Nas Mémoires de Trévoux (fevereiro de 1737), introduziu-se o termo optimisme ou "sistema do optimum" para designar a doutrina defendida por Leibniz na Teodicéia: o mal que pode ser encontrado na criação de Deus não deve ser julgado isoladamente, mas em relação com a totalidade da criação, a qual, em virtude da infinita bondade de Deus, não pode ser melhor do que é. A criação é, pois, "ótima", isto é, o mundo é um optimum. O otimismo é nesse caso um simples reconhecimento da “otimidade” do mundo.
      Voltaire intitulou Candide, ou l’optimiste o romance no qual, entre outras coisas, se zomba das ideias, ou pronunciamentos, do doutor Pangloss, que, segundo se supõe, representa a concepção leibniziana , ou derivada de Leibniz, e toda forma de “teodicéia”: diante de desgraças e crueldades em série, o doutor Pangloss julga que tudo anda bem e que, se não tivesse ocorrido o mal que ocorreu, não teria vindo o bem que se celebra. Assim, portanto, tudo está bem: tout est bien dans le meilleur des mondes.
      Visto que o pessimismo é o contrário do otimismo, caberia pensar que se Voltaire ataca este último é porque se manifesta em favor do primeiro. Contudo, embora Voltaire olhe a história com "pessimismo", como uma sucessão de desgraças, estas foram produzidas pela imbecilidade humana. As coisas podem melhorar eliminando-se a imbecilidade e a ignorância e fomentando a razão, que se ocultou, temerosa, no fundo de um poço, e é preciso fazê-la sair de lá. Voltaire é, nesse sentido, um "meliorista", ainda que caibam dúvidas sobre a intensidade desse "meliorismo" diante do pessimismo suscitado pelo terremoto de Lisboa, do qual ele dá testemunho no Poème sur le desastre de Lisbonne, de 1756.
      As tendências ao pessimismo ou ao otimismo são anteriores à introdução dos vocábulos correspondentes. São também, em muitos casos, específicas, ou seja, relativas a determinado ponto ou fim. Assim, por exemplo, Hobbes é um pessimista no que se refere à condição humana em estado natural, enquanto Rousseau é um otimista no que diz respeito à mesma condição. Por outro lado, Hobbes é ao menos "meliorista" com relação às possibilidades de dirigir a condição humana por meio de um Estado autoritário que neutralize o egoísmo de cada indivíduo, e Rousseau é também pelo menos "meliorista" com relação às possibilidades de eliminar as perversões introduzidas pela "cultura" e de restabelecer a bondade natural do homem.
      Pode-se distinguir entre um otimismo racional, e até racionalista; um otimismo temperamental, que não precisa buscar justificações racionais (ou que as encontra facilmente); e um otimismo ativo, ou pragmático, que se funda numa concepção libertadora da ação. Nenhum desses otimismos tem muitos defensores entre os filósofos; as manifestações de otimismo são escassas em comparação com as várias formas de intenso pessimismo que se manifestaram no século XIX (Schopenhauer, Eduard von Hartmann etc.), pessimismo que, depois de um período de "confiança" (ao menos entre certas camadas sociais no Ocidente), ressurgiu em estreita relação com as preocupações concernentes a possíveis catástrofes ecológicas, ou eco-catástrofes.
      É possível ser um otimista "em geral", embora se seja pessimista com relação a aspectos particulares. Deste ponto de vista, as concepções da história segundo as quais esta se acha regida por leis, e especialmente por leis de aperfeiçoamento, são otimistas, a despeito de quaisquer formas de pessimismo e de crítica que possam ser encontradas em alguma etapa determinada.


______
MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia (tomo III). São Paulo: Loyola, 2001. p. 2180-1.

21 de outubro de 2010

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13.


      A humanidade permanece, de forma impenitente, na caverna de Platão, ainda se regozijando, segundo seu costume ancestral, com meras imagens da verdade.

Diálogo


      "Você se casou?"
      "Não tiveram tempo..."


______
QUINTANA, Mario. Caderno H. São Paulo: Glogo, 2006. p. 162.

Dolorosa interrogação


      Por que será que a gente vive chorando os amigos mortos e não aguenta os que continuam vivos?


______
QUINTANA, Mario. Caderno H. São Paulo: Globo, 2006. p. 183.

13 de outubro de 2010

And death shall have no dominion


And death shall have no dominion.
Dead men naked they shall be one
With the man in the wind and the west moon;
When their bones are picked clean and the clean bones gone,
They shall have stars at elbow and foot;
Though they go mad they shall be sane,
Though they sink through the sea they shall rise again;
Though lovers be lost love shall not;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
Under the windings of the sea
They lying long shall shall not die windily;
Twisting on racks when sinews give way,
Strapped to a wheel, yet they shall not break;
Faith in their hands shall snap in two,
And the unicorn evils run them through;
Split all ends up they shan't crack;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
No more may gulls cry at their ears
Or waves break loud on the seashores;
Where blew a flower may a flower no more
Lift its head to the blows of the rain;
Though they be mad and dead as nails,
Heads of the characters hammer through daisies;
Break in the sun till the sun breaks down,
And death shall have no dominion.


______
THOMAS, Dylon. Collected poems 1934-1953. London: Phoenix Books, 2005. p. 56.

2 de outubro de 2010

Meio-dia


Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo
Parece bater palmas.


______
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Mar. Lisboa: Caminho, 2004. p. 17.

27 de julho de 2010

Passagem do ano


O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


______
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.

Natal


Nasce um deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.


______
PESSOA, Fernando. Poesia (1918-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 198.

Versos de Natal


Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até ao fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.


______
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 171.

      O que explica o sucesso de muitas obras é a relação ali encontrada entre a mediocridade das ideias do autor e a mediocridade das ideias do público.


______
CHAMFORT. Máximas e pensamentos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. p. 58.

Ulisses


O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.


______
PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

O pão do meu verso


Meu verso é como o pão do Egito:
a noite passa sobre ele e não podes mais comê-lo.

Devora-o enquanto está fresco,
antes que o recubra a poeira do deserto.

Seu lugar é o clima cálido do coração,
ele não sobrevive ao gelo deste mundo.

É como um peixe na terra seca:
estremece por um instante e logo perece.

Se queres comê-lo e o imaginas fresco,
terás de invocar muitos ídolos.

O que agora bebes é tão somente tua imaginação.
Isto não é uma ilusão, companheiro!


______
RUMI, Jalal ud-Din. Poemas místicos - Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar, 1996.

Emergência


Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas, enfim, profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.


______
QUINTANA, Mario. Apontamentos de história sobrenatural. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

15 de julho de 2010

SIMENON. p. 108.


      [O comissário Maigret] subiu até [o juiz] Coméliau, que encontrou em seu gabinete, pretes a ir almoçar.
      "O senhor prendeu os dois?"
      "O jovem está em meu gabinete, com Lapointe que o interroga."
      "Ele falou?"
      "Mesmo que saiba alguma coisa, não dirá nada antes que coloquemos as provas sob seu nariz."
      "Ele é inteligente?"
      "Justamente, não. Em geral, acabamos vencendo a resistência do inteligente, nem que apenas demonstrando que suas respostas não se sustentam. Um imbecil se contenta em negar, apesar das evidências."


______
SIMENON, Georges. Maigret e o corpo sem cabeça. [trad. Julia da Rosa Simões]. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 108.

12 de julho de 2010

Máxima #57


      A zombaria é, muitas vezes, indigência de espírito.


______
BRUYÈRE, La. Os caracteres. [trad. Alcântara Silveira]. São Paulo: Cultrix, 1965. p.75.

Bukowski


não fale sobre o que
você já fez.
não fale sobre o que
você não fez.
não fale.

não dê bom-dia
a alguém com ressaca.
não dê boa-noite
a alguém com insônia.
não dê.

não jogue pedrinhas
na minha janela.
não falseie a voz, Romeu,
não toque o violão.
não faça.

não discuta arte
com poetas mortos.
não se aproxime
dos que se dizem vivos.
não se aproxime.

não me fale sobre
os filmes que você viu.
não cubra esse bocejo
amarelo de agonia.
não cubra.

não guarde panfletos.
não distribua panfletos.
não aceite panfletos.
não seja um panfleto.
não seja.

seja sensível e não sentimental
mas jamais tente ser sensível.
evite discussões filosóficas
mas, se inevitáveis, esteja armado.
não atire!

não pergunte o que uma pessoa disse
depois que ela disser alguma coisa.
se você não entendeu de imediato
não vai entender em um milhão de anos.
não tente.

não fale em alma ou em deus
como se fossem coisas separadas.
não fale em alma ou em deus
como quem falasse de uma arma.
não fale.

tente não ficar velho o bastante
para se sentir velho o bastante.
mas, se isso for inevitável,
compre uma espingarda.
não ouse!

não discuta ou queira entender os fatos.
não leia jornais nem assista ao noticiário.
é sua única chance de escapar ileso, mas
isso não significa que você vai escapar.
não escape.

mergulhe sempre o mais fundo que puder.
não guarde o ar com medo de não ter ar.
não tema.

não se esqueça: acima de tudo
nunca deixe que te digam
o que é certo ou absurdo.
martele o prego da cruz exclusiva,
não pare.


______
MARONA, Leonardo. Pequenas biografias não-autorizadas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. p. 39-41.

Máxima #37


      Não há nada, por mais sutil, simples e imperceptível, em que não haja maneiras que nos revelem. Um tolo não sai, nem entra, nem se senta, nem se levanta, nem se cala, nem permanece de pé como um homem inteligente.


______
BRUYÉRE, La. Os caracteres. [trad. Alcântara Silveira]. São Paulo: Cultrix, 1965. p. 42.

18 de junho de 2010

Como se fosse


      De nada adiantou a couraça contra o fio da espada. O sangue jorrou entre as frestas metálicas e o jovem rei morreu no campo de batalha. Tão jovem, que não deixava descendente adulto para ocupar o trono. Apenas, da sua linhagem, um filho menino.
      Antes mesmo que a tumba fosse fechada, já os seus fiéis capitães se reuniam. A escolha de um novo rei não pode esperar. E determinaram que o menino haveria de reinar, a coroa lhe cabia de direito. Que começassem os preparativos para colocá-la sobre sua cabeça.
      Aprontavam-se as festas da coroação, enquanto os capitães instruíam o menino quanto ao seu futuro. Mas porque o rei seu pai havia sido muito amado pelo povo e temido pelos inimigos, e porque o rosto do menino era tão docemente infantil, uma decisão sem precedentes foi tomada.
      No dia da grande festa, antes que a coroa fosse pousada sobre os cachos do novo rei, a rainha sua mãe avançou e, diante de toda a corte, prendeu sobre seu rosto uma máscara com a efígie do pai. Assim ele haveria de ser coroado, assim ele haveria de governar. E os sinos tocaram em todo o reino.
      Muitos anos se passaram, muitas batalhas. O menino rei não era mais um menino. Era um homem. Acima da máscara seus cabelos começavam a branquear. Seu reino também havia crescido. As fronteiras extensas exigiam constante defesa.
      E na batalha em que defendia a fronteira do Norte, acossado pelos inimigos, o rei foi abatido no fundo de uma ravina, sem que de nada lhe valesse a couraça.
      Antes que fechasse os olhos, acercaram-se dele seus capitães. Retiraram o elmo. O sangue escorria da cabeça. O rei ofegava, parecia murmurar algo. Com um punhal cortaram as tiras de couro que prendiam a máscara. Soltou-se pela primeira vez aquele rosto pintado ao qual todos se haviam acostumado como se fosse carne e pele. Mas o rosto que surgiu por baixo dele não era um rosto de homem. A boca de criança movia-se ainda sobre mudas palavras, os olhos do rei faziam-se baços num rosto de menino.


______
COLASANTI, Marina. 23 histórias de um viajante. São Paulo: Global, 2008. p. 115-6.

16 de junho de 2010

Invictus


Out of the night that covers me,
   Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
   For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
   I have not winced not cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
   My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
   Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
   Finds, and shall find, me unafraid.

It matters not how strait the gate,
   How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
   I am the captain of my soul.


______
HENLEY, William E. Invictus. In: SPEARE, M. E. The pocket book of verse. New York: Pocket Books, 1950. p. 278-9.

14 de junho de 2010

Máxima #18


      A mesma agudeza de espírito que faz escrever boas coisas, faz perceber que talvez elas não o sejam bastante para merecerem ser lidas.
      Um espírito medíocre julga escrever divinamente; um espírito sagaz pensa escrever razoavelmente.


______
BRUYÈRE, La. Os caracteres. São Paulo: Cultrix, 1965. p. 35.

Máxima #10


      Há na arte um ponto de perfeição, como o há de excelência ou maturidade na natureza. Aquele que o sente e o ama tem o gosto perfeito; o que não o sente e que o aprecia aqui ou ali, tem o gosto defeituoso. Há, portanto, bom gosto e mau gosto, e é com fundamento que se discutem os gostos.


______
BRUYÈRE, La. Os caracteres. São Paulo: Cultrix, 1965. p. 34.

11 de junho de 2010

De "O homem revoltado"


      Que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento. [...] De certa maneira, ele contrapõe à ordem que o oprime uma espécie de direito a não ser oprimido além daquilo que pode admitir.


______
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 25.

De "O homem revoltado"


      A contradição é a seguinte: o homem recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele. Na verdade, os homens agarram-se ao mundo e, em sua imensa maioria, não querem deixá-lo. Longe de desejar realmente esquecê-lo, eles sofrem, ao contrário, por não possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo, exilados em sua própria pátria. A não ser nos instantes fulgurantes da plenitude, toda realidade é para eles incompleta.


______
CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 299.

5 de junho de 2010


às vezes nos reveses
penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
digo: aguenta com altivez
segura o abacaxi com as duas mãos
doura tua tez
sob o sol dos trópicos e talvez
aprenderás a ser feliz
como as pombas da praça matriz
que voam alto
sagazes
e nos alvejam
com suas fezes
às vezes nos reveses


______
FREITAS, Angélica. Rilke shake. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. p. 54.

30 de maio de 2010

O assassinato de Hipátia


      Hipátia foi a primeira mulher na história assassinada por ser uma pesquisadora da ciência. Era a filha mais bonita de Teão, bibliotecário em Alexandria. Seu pai escreveu tratados de geometria e música, era um erudito reconhecido, mas ela o superou em tudo e chegou a possuir o domínio total da astronomia e da matemática de seu tempo. Escreveu textos densos. Sabe-se, por exemplo, que foi autora de um Comentário sobre a Aritmética de Diofanto, um Comentário sobre as Crônicas de Apolônio, e uma edição do terceiro livro de um escrito em que seu pai divulgou o Almagesto de Ptolomeu. Lamentavelmente não restou absolutamente nada, porque seus escritos foram destruídos.
      Na primavera de 415 d.C., uma multidão de monges devotos, liderados por um tal de Pedro, seguidor do venerável Cirilo, bispo de Alexandria, sequestrou-a. Hipátia se defendeu e gritou, mas ninguém ousou ajudá-la. O terror se impôs e, dessa forma, os monges puderam levá-la até a igreja de Cesário. Ali, à vista de todos, golpearam-na brutalmente com telhas. Arrancaram-lhe os olhos e a língua. Quando já estava morta, levaram o corpo para um lugar chamado Cinaro e o despedaçaram, arrancaram os órgãos e os ossos e finalmente queimaram os restos. A intenção final não era outra que a total aniquilação de tudo quanto Hipátia significava como mulher.
      Cirilo era sobrinho de Teófilo, o causador da destruição do Serapeum. Tinha um destino determinado e o cumpriu. De 412 d.C. a 444 d.C., regeu o rumo espiritual dos alexandrinos. Não suportou a sabedoria de Hipátia, capaz de pôr em dúvida as doutrinas cristãs ao exercer, com modéstia, o método científico. Damáscio contou o seguinte: "Cirilo se corroía a tal ponto que tramou o assassinato dessa mulher de maneira que acontecesse o mais cedo possível [...]." (Vida de Isidoro, 79, 24-25.)
      O prefeito da cidade, envergonhado, determinou uma investigação sobre a morte de Hipátia e designou, como coordenador, Edésio, que não tardou a receber dinheiro de Cirilo para esquecer tudo. O crime de Hipátia ficou, assim, impune, por esse suborno constrangedor.


______
BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros. [trad. Léo Schlafman]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p. 108-9.

20 de maio de 2010

      A religião, por ter no terror a sua origem, dignificou certos tipos de medo e fez com que as pessoas não os julgassem vergonhosos. Nisso prestou um grande desserviço à humanidade, uma vez que todo medo é ruim. Acredito que quando morrer apodrecerei e nada de meu ego sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenharia estremecer de pavor diante do pensamento da aniquilação. A felicidade não deixa de ser verdadeira porque deve necessariamente chegar a um fim; tampouco o pensamento e o amor perdem seu valor por não serem eternos. Muitos homens preservaram o orgulho ante o cadafalso; decerto o mesmo orgulho deveria nos ensinar a pensar verdadeiramente sobre o lugar do homem no mundo. Ainda que as janelas abertas da ciência a princípio nos façam tiritar, depois do tépido e confortável ambiente familiar de nossos mitos antropomórficos tradicionais, ao fim o ar puro nos confere vitalidade, e ademais os grandes espaços têm seu próprio esplendor.


______
RUSSELL, Bertrand. No que acredito. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 38-9.

      Os que crêem que na morte herdarão a bem-aventurança eterna quiçá possam encará-la sem horror, ainda que, para a felicidade dos médicos, isso não aconteça com frequência.


______
RUSSELL, Bertrand. No que acredito. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 38.

15 de maio de 2010

O dia do juízo


Quatro marm'anjos botarão a boca
No trombone, um em cada canto, e então,
Com toda a força dos pulmões dirão:
"É hora, pessoal. Fora da toca!"

Depois virá chegando a massaroca
de esqueletos, da terra, de roldão,
Catando os corpos pra reunião,
Pintos em torno da galinha choca.

E a galinha será Deus poderoso,
Separando a pureza da sujeira:
Uns vão pro caldeirão, outros pro gozo.

Por último virá uma fieira
De arcanjos: uma a um, belo e formoso,
Apagarão a luz e "bona sera".


______
BELLI, Giuseppe Gioachino. O dia do juízo. In: CAMPOS, Augusto de. À margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 59.

14 de maio de 2010

Uma nuvem de corvos


Chegas ao fim da linha, o vento
Norte despeja sobre o rio
A poeira das casas em ruína.
Aí estás solitária e a praça te abandona
Na encruzilhada, e já não sabes
Mais viver, não sabes recordar.
Tão verde o sabugueiro aquela tarde,
Frescos os montes de terra
Além da cidade, pelo declive
Que de Santa Sabina
Desce à Bocca della Verità.

Ah! transviada (o ano hoje nos colhe
Tão distanciados por estradas diversas)
Caminhas, eu te chamo. Fere as janelas
Obliquamente a chuva.
Afastas o maço dos cabelos
Das orelhas, sacodes
As lembranças perdidas: uma nuvem
De corvos do meu céu
Pousa, quando anoitece, em teu espelho.

(trad: Augusto de Campos)


______
SINISGALLI, Leonardo. Uma nuvem de corvos. In: CAMPOS, Augusto de. À margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 65.

1 de abril de 2010

Açoite


Tal qual, não apesar do açoite,
antes por causa da agonia,
o masoquista que riria
caso lhe perguntassem "dói-te?",

cada qual tenta, dia a dia,
sem que, por muito que se afoite,
possa, ante a boquiaberta noite,
colher minimamente o dia

(que, tudo indica, não é parque
temático, mas sim, malgrado
os lapsos lúdicos que abarque,

centro no qual processam dados
sem uso salvo o de informar que
todos os dias são contados).


______
ASCHER, Nelson. Parte alguma. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 112.

29 de março de 2010


      Human beings have always tried to cure psychological disorders through the body. In the Hippocratic tradition, melancholics were advised to drink white wine, in order to counteract the black bile. (This remains an option).


______
MENAND, Louis. Head case: can psychiatry be a science? The New Yorker, New York, v. LXXXVI, n. 2, p. 69-74, mar. 2010.

24 de março de 2010


      É a imaginação que se aterroriza em nós. É a razão que tranquiliza.


______
COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 16.

      A necessidade de crer tende a preponderar, quase em toda parte, sobre o desejo de liberdade.


______
COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 14.

21 de março de 2010

Atriz


as palavras,
se elas saem doloridas,
é a tinta negra que sangra
as frases como feridas.

pouco me adiantam
as palavras floridas
que desabrocham no ar:
pétalas amorfas
na solução do armário.

prefiro um dedo direito
e uma intenção sinistra.

quero de ti
a palavra comida.
quero as palavras
pelos poros da página,
pelo meio da tua virilha.

quero enfim,
segundos antes da cortinas,
escrever aquilo que te cala.


______
MARONA, Leonardo. Pequenas biografias não autorizadas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 17.

20 de março de 2010

Adeus


hoje estou
contando dias e horas
com a ligeira impressão
de que me cortaram fora
os dedos da mão.

existe um ônibus
à minha espera
do outro lado
do pensamento.

ouço seu freio-
motor antecipando
uma curva fechada
onde repousa meu
óleo essencial.

pelas curvas
dessa
nova estrada
queria
encontrar
no lugar das
placas
marcas
de pneus gastos
e nas marcas
rastros
do meu amor.

mas ninguém
conhece o que
ama.

ama-se
surpreendentemente
como quem acolhe
um tiro.


______
MARONA, Leonardo. Pequenas biografias não autorizadas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 12-3.

18 de março de 2010

Soneto do desmantelo azul


A Samuel Mac Dowell, filho


ENTÃO, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.


______
FILHO, Carlos Pena. Livro geral. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.

Para fazer um soneto


A Tomaz Seixas


Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças de infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.


______
FILHO, Carlos Pena. Livro geral. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.

A solidão e sua porta


A Francisco Brennand


Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha)

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.


______
FILHO, Carlos Pena. Livro geral. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.

Soneto para Greta Garbo

(Em louvor da decadência bem comportada)


Entre silêncio e sombra se devora
e em longínquas lembranças se consome;
tão longe que esqueceu o próprio nome
e talvez já nem saiba por que chora.

Perdido o encanto de esperar agora
o antigo deslumbrar que já não cabe,
transforma-se em silêncio, porque sabe
que o silêncio se oculta e se evapora.

Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a face
que já foi sol e agora é cinza fria.

Mas vê nascer da sombra outra alegria:
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que não via.


______
FILHO, Carlos Pena. Livro geral. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.

10 de março de 2010

Os Lamed Wufniks


      Há na terra, e sempre houve, trinta e seis homens íntegros cuja missão é justificar o mundo perante Deus. São os Lamed Wufniks. Não se conhecem entre si e são muito pobres. Se um homem chega a saber que é um Lamed Wufnik, morre imediatamen e há outro, talvez em outra região do planeta, que toma seu lugar. São, sem suspeitar, os secretos pilares do universo. Se não fosse por eles, Deus aniquilaria o gênero humano. São nossos salvadores e não sabem disso.
      Essa crença mística dos judeus foi revelada por Max Brod.
      A origem remota pode ser procurada no capítulo XVIII do Gênesis, no qual o Senhor declara que não destruirá a cidade de Sodoma se nela houver dez homens justos.
      Os árabes têm um personagem análogo, os Kutb.


______
BORGES, Jorge Luis & GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. [trad: Carmen V. C. Lima]. São Paulo: Globo, 2000. p. 169.

O pássaro que traz a chuva


      Além do dragão, os agricultores chineses dispõem do pássaro chamado shang yang para obter a chuva. Tem só uma pata; em épocas antigas as crianças saltavam em um pé só e franziam as sobrancelhas afirmando: "Vai chover, vai chover, o shang yang está pulando pra valer". Conta-se, com efeito, que bebe a água dos rios e a deixa cair sobre a terra.
      Um antigo sábio o domesticou e costumava levá-lo na manga. Os historiadores registram que desfilou certa vez ante o trono do príncipe Ch'i, batendo as asas e dando saltos. O príncipe, alarmado, enviou um de seus ministros à corte de Lu, para consultar Confúcio. Este predisse que o shang yang produziria inundações na região e nas comarcas adjacentes. Aconselhou a construção de diques e canais. O príncipe acatou as advertências do mestre e evitou assim grandes desastres.


______
BORGES, Jorge Luis & GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. [trad: Carmen V. C. Lima]. São Paulo: Globo, 2000. p. 202.

2 de março de 2010

Erudição


"Cogito, ergo sum."
Assim se diz em latim
e em lugar nenhum.


______
SIQUEIRA JR, Waldomiro. Erudição. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 183.

vadeando o rio
(de viola e sem sacola)
vadiando rio


______
XISTO, Pedro. [sem título]. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 175.

rios erradios
se inculcam na curva oculta
(vi-os ah desvios)


______
XISTO, Pedro. [sem título]. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 174.

os mantos revoltos
ouro (preto) pedra pó
os ventos barrocos


______
XISTO, Pedro. [sem título]. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig. Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 171.

Pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando


______
LEMINSKI, Paulo. [sem título]. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 163.

Soprando esse bambu
Só tiro
O que lhe deu o vento


______
LEMINSKI, Paulo. [sem título]. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 161.

Rota


Que arda em nós
tudo quanto arde
e que nos tarde a tarde.


______
SAVARY, Olga. Rota. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 148.

1 de março de 2010

Ficar de joelhos para recitar a lista telefônica


Duração: 15 minutos exatamente
Material: um catálogo telefônico, de preferência antigo
Efeito: respeitoso


      Aqueles que amam os rituais não cansam de repetir: se você fizer os gestos, a crença virá. Fique de joelhos, recite da forma certa que a fé acabará chegando. Apesar disso ofender aqueles que têm uma convicção verdadeira, essa opinião não é desprovida de fundamento. É possível perceber isso através da seguinte experiência.
      Separe durante alguns dias quinze minutos do seu tempo, sempre na mesma hora. Leia em voz alta um número sempre idêntico de páginas do catálogo telefônico. Você articulará inteligentemente, linha após linha, os nomes, sobrenomes, endereços e números. Você deve procurar um catálogo bem antigo. Isso não é indispensável, mas seria interessante que essa leitura fosse o máximo possível desprovida de qualquer utilidade e presa a um texto já estabelecido, transmitido ao longo do tempo.
      Procure não dar um sentido à sua recitação. Não pense que está evocando o espírito central pedindo pelos defuntos, ou que com sua prece alcança a grande interconexão universal. Não. Você lê todos os dias de joelhos, durante quinze minutos, páginas da lista telefônica. Isso é uma prática. O resto não passa de comentários e de floreados.
      Além das eventuais dores nos joelhos, o que você pode aprender com essa experiência? A força extrema dessas restrições absurdas, a fascinação bizarra que elas exercem, o poder que não conseguimos deixar de atribuir a elas. Porque há fortes chances de você não poder continuar sem ter de inventar uma explicação. Você começa provavelmente a atribuir algum motivo para seu comportamento. Você elabora, mesmo que seja para rir, um mito que permite dar conta dessa leitura, de seu objetivo e de sua dimensão.
      Se não conseguir parar, funde uma seita.


______
DROIT, Roger-Pol. 101 experiências de filosofia cotidiana. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. p. 165-6.

20 de fevereiro de 2010

Come. And be my baby


The highway is full of big cars
going nowhere fast
And folks is smoking anything that'll burn
Some people wrap their lives around a cocktail glass
And you sit wondering
where you're going to turn.
I got it.
Come. And be my baby.

Some prophets say the world is gonna end
      tomorrow
But others say we've got a week or two
The paper is full of every kind of blooming horror
And you sit wondering
What you're gonna do.
I got it.
Come. And be my baby.


______
ANGELOU, Maya. Come. And be my baby. In: BARBER, Laura (org). Penguin's poems for love. London: Penguin, 2009. p. 102.

10 de fevereiro de 2010

Soneto XLIV


Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo todavia.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desditoso.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.


______
NERUDA, Pablo. Cem sonetos de amor. Porto Alegre: L&PM, 1997.

9 de fevereiro de 2010

O pensamento


O ar. A folha. A fuga.
No lago, um círculo vago.
No rosto, uma ruga.


______
ALMEIDA, Guilherme de. O pensamento. In: GUTTILLA, Rodolfo W. Boa companhia: haicai. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 85.

2 de fevereiro de 2010

Prodígio


Oh flor, oh muro,
Vós ambos sois.
Ser, este é, pois,
O liame obscuro

Que há em vós. O puro
Elo. Depois,
Se se erguem sóis,
Se se alça o escuro,

Que importa? Estais,
Seiva, argamassa,
Aqui. Jamais

Sereis mais que isto
Que é, que não passa.
Oculto e visto.


______
BUENO, Alexei. Em sonho. Rio de Janeiro: Record, 1999.

1 de fevereiro de 2010

Os tristes


Em seus caramujos,
os tristes sonham silêncios.
Que ausência os habita?


______
KOLODY, Helena. Os tristes. In: GUTTILLA, Rodolfo W. (org). São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 99.

Teoria da relatividade


devagar se vai longe

mais perto de deus o ateu
do que o monge


______
PAES, José Paulo. Teoria da relatividade. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 111.

Lar


espaço que separa
o volkswagen
da televisão


______
PAES, José Paulo. Lar. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 110.

29 de janeiro de 2010


Num automóvel aberto
riem mascarados.
Só minha tristeza não se diverte.


______
ANDRADE, Carlos Drummond de. Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 49.

Pelo vão das telhas
o dia olha, e se anuncia
em vestes vermelhas.


______
PEREIRA, Abel. Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 26.

28 de janeiro de 2010

Norte verdadeiro


Traço o rumo à frente
de alguém que me segue bem
paralelamente.

27 de janeiro de 2010

S. O. S.


O poema é uma garrafa de náufrago jogada ao mar.
Quem a encontra
Salva-se a si mesmo...


______
QUINTANA, Mario. O livro de haicais. São Paulo: Globo, 2009.

25 de janeiro de 2010

Poema


A poesia está guardada nas palavras - é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.


______
BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 19.

15 de janeiro de 2010


      Se o artista aceita pagar com sua vida para descer até o fundo da sua noite, não é para fazer uma obra e ser coroado por ela sob os refletores.
      [...]
      Daí sua [de Beckett] observação: "Ser um artista é fracassar", e mesmo "ousar fracassar, como nenhum outro ousa fracassar". E fracassar é malograr na busca de uma "forma para o ser". Pois "o ser é fragilidade, caos", e como tal ele ameaça constantemente a forma. Consequência: o ser (a coisa inominável) não se dá senão por meio da falência, do fracasso das formas. A linha geral do artista pode ser, então, definida pelo princípio de uma "fidelidade ao fracasso".


______
PRADO JR., Plínio. O evento Beckett. Revista Cult. São Paulo, nº 142, p. 62, dez. 2009.

13 de janeiro de 2010


      Vau do mundo é a coragem... (Riobaldo)


______
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 285.

      Os morcegos não escolheram de ser tão feios tão frios - bastou só que tivessem escolhido de esvoaçar na sombra da noite e chupar sangue. (Riobaldo)


______
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 289.