3 de dezembro de 2016

O gato e o galo


Um gato apanhou um galo e decidiu devorá-lo sob um pretexto bem plausível. E começou a fazer-lhe acusações, dizendo que ele era um estorvo para os homens, pois cantava à noite e não os deixava pegar no sono. O galo se defendeu dizendo que agia assim para o bem deles, despertando-os para cuidarem dos afazeres rotineiros. O gato fez uma segunda acusação: “Mas você também tem natureza ímpia, pois se acasala com sua mãe e suas irmãs”. E, como o galo afirmasse que agia assim também em benefício dos patrões, provendo para eles grande quantidade de ovos, o gato, sem jeito, respondeu: “Quer dizer que, se suas defesas forem sempre bem-sucedidas, eu não terei como comer você?”

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ESOPO. Fábulas completas. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 217.

14 de julho de 2016

[diante de nós a noite]


diante de nós a noite
mas o sol ainda vai se pôr
no espelho retrovisor

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RUIZ, Alice. Outro silêncio: haikais. São Paulo: Boa Companhia, 2015. p. 90.

[folha seca]


folha seca
voa de volta ao galho
pé de vento

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RUIZ, Alice. Outro silêncio: haikais. São Paulo: Boa Companhia, 2015. p. 74.

[escada de barro]


escada de barro
carrega lembranças
do braço amigo

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RUIZ, Alice. Outro silêncio: haikais. São Paulo: Boa Companhia, 2015. p. 42.

8 de julho de 2016

Entre galos e cigarros, o amor


O amor em sua ilusão
é como o fumo que se queima,
e sabe em seu fogo toda a existência.
Mas, enquanto se esvai,
atribui à boca que o traga
toda permanência.

O amor em sua metafísica
canta como os galos
que sabem alvorecer a manhã,
mas tornam ao sono
na esperança de que o próprio canto
os desperte.


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MORGADO, Flávio. Entre galos e cigarros, o amor. IN: PORTOCARRERO, Celina (org). Amar, verbo atemporal: 100 poemas de amor. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 87.

29 de junho de 2016

Canção dos dias grandes


A tarde não termina
porque o dia se esquece
de correr a cortina
pra que ele próprio cesse

É dia é dia ainda
vamos brincar correr
depois será bem-vinda
a noite que vier

E um frio tão fino
tão pouco já, tão leve
joga com o menino
no crepúsculo breve

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CRUZ, Gastão. Canção dos dias grandes. In: FERRAZ, Eucanaã (org). A lua no cinema e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 19.

[quando eu tiver setenta anos]


quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre-docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.

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LEMINSKI, Paulo. Caprichos e relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 35.

Os amantes sem dinheiro


Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de ouro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

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ANDRADE, Eugénio de. Os amantes sem dinheiro. In: FERRAZ, Eucanaã (org). A lua no cinema e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 61.

13 de junho de 2016

Cantiga para não morrer


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

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GULLAR, Ferreira. Cantiga para não morrer. In: FERRAZ, Eucanaã. A lua no cinema e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 64.

Dia de hoje

Ó dia de hoje, ó dia de horas claras
florindo nas ondas, cantando nas florestas,
no teu ar brilham transparentes festas
e o fantasma das maravilhas raras
visita, uma por uma, as tuas horas
em que há por vezes súbitas demoras
plenas como as pausas dum verso.

Ó dia de hoje, ó dia de horas leves
bailando na doçura
e na amargura
de serem perfeitas e de serem breves.

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ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Dia de hoje. In: FERRAZ, Eucanaã (org). A lua no cinema e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 45.

27 de maio de 2016

Canção do dia de sempre


Tão bom viver dia a dia...
A vida, assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
como essas nuvens do céu...

E só ganhar, toda a vida,
inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
das outras vezes perdidas,
atiro a rosa do sonho
nas tuas mãos distraídas...

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QUINTANA, Mário. Canção do dia de sempre. In: FERRAZ, Eucanaã. A lua no cinema e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 124.

4 de março de 2016

Estado de contra-sítio

Assim, pois, estamos sitiados
E por quem
Por ti e por mim, pela coisa
Estamos sempre sitiados
Por fronteiras, alfândegas, controles de passaporte, Interpol, polícia militar, tanques, lábia, burrice,
Por medalhas, uniformes, discursos oficiais,
Promessas, imposturas, artimanhas,
Falsa indignação dos dirigentes, hipocrisia,
Televisão, rádio, sabões, detergentes,
Publicidade, turismo, excursões, cruzeiros,
Fogões, geladeiras, acampamentos, escoteiros,
Artigos sobre educação, por multidão, poeira, coletânea de poemas,
Falta d’água, adubo, nervos, perturbações digestivas, calvície,
Armadores, futebol, ônibus, pontualidades, lesões
Da coluna vertebral, burocracia, prazos, atestados,
Críticas, Igreja, torturas, oportunistas,
Suspeita, perseguições, medo, impudência, concursos
De beleza, falta de dinheiro, falta de liberdades, estamos sitiados pelos boçais,
Bocas-moles, por nossas ideias negras, por nós mesmos,
E por qualquer coisa que venha à cabeça, estamos sempre sitiados.

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VALAORITIS, Nanos. Estado de contra-sítio. In: LACARRIÈRE, Jacques. Grécia: um olhar amoroso. [trad. Irene Ernest Dias & Véra dos Reis]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 544.