13 de setembro de 2017

Vigiando o oco do tempo


Deslizo,
oculto aqui,
vigiando o oco do tempo.
Espaço ermo, parado.
Nada acontece. Nada parece acontecer.
Mas algo flui, o irremediável,
queimando todas as pontes de regresso.
Todo o passado está morto;
só vige o que vem, o que surge.
Todas as coisas íntegras dilaceram-se
ou são dilaceradas.
A velha senhora viajada,
detentora do recorde de milhagens,
temerosa das vacas do Ganges
depois de ter contemplado um berne
ao microscópio.
Berne que agora corrompe e torna pútrida
qualquer carne verde que ela vê
pois seu olho holografa
o esqueleto subjacente a todo corpo vivo.
Viver em mudança.

O assoalho repleto das peles velhas das cobras
e do pelo felpudo das aranhas caranguejeiras.
Viver em mudança.
Que a sobre-humana poesia pica e envenena
um homem.

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SALOMÃO, Waly. O mel do melhor. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 63.

Cobertor


      Pode não haver luz na melancolia: pode ficar tudo insípido e os passos escassearem, diminuindo o alcance a frequência. O próprio batimento cardíaco pode ralentar-se e o horizonte aproximar-se, como um muro que nos alcança pela frente. Pode a alegria parecer ridícula debaixo de uma camada tão espessa (a melancolia é sempre um cobertor, um feltro, que silencia os agudos mas não os graves). Nossa vida pode parecer amaldiçoada desde o nascimento ou ainda mais, desde os mamutes ou desde os trilobitas.
      Sim, pode, mas, ainda assim, alguma certeza a melancolia tem. Um foco, uma concentração diamantina naquilo (estar melancólico), um despreocupar-se com milhares de chamados e deveres, uma redução (uma compressão, mais exatamente) de um material gasoso ao estado quase sólido, que nos dispensa de atender telefones, de ser simpáticos, de falar alto. É isso o que tem de atraente e, no limite, de acolhedor.

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RAMOS, Nuno. Fooquedeu. Piauí, Rio de Janeiro, n. 118, jul. 2016.