23 de dezembro de 2009

Quem


Quem um dia dançou os pés de outro?
Todos os que dançam, todos
Apenas dançam os próprios pés.
Quem pensa na imortalidade do outro
E durante seu próprio sonho
Sonha com o sonho do outro?
Quem, no nascimento do menino humilde,
Pede sua coroação pelos reis?
Quem manda violetas ao pobre encarcerado?
Quem se sente poeta pelo que o não é?


______
MENDES, Murilo. Melhores poemas. São Paulo: Global, 1997.

9 de dezembro de 2009

Seul

      Tout notre mal vient de ne pouvoir être seuls: de là le jeu, le luxe, la dissipation, le vin, les femmes, l'ignorance, la médisance, l'envie, l'oubli de soi-même et de Dieu.


______
BRUYÈRE, Jean de La.

8 de dezembro de 2009

Looking forward


When I am grown to man's state
I shall be very proud and great,
And tell the other girls and boys
Not to meddle with my toys.


______
STEVENSON, Robert L. A child's garden of verses. London: Penguin, 1994. p. 18.

3 de dezembro de 2009

This be the verse


They fuck you up, your mom and dad.
  They may not mean to, but they do.
They fill you with the faults they had
  And add some extra, just for you.

But they were fucked up in their turn
  By fools in old-style hats and coats,
Who half the time were soppy-stern
  And half at one another's throats.

Man hands on misery to man.
  It deepens like a coastal shelf.
Get out as early as you can,
  And don't have any kids yourself.


______
LARKIN, Philip. Collected poems. New York: Noonday Press, 1993. p. 180.

19 de novembro de 2009

Beber água e urinar ao mesmo tempo


Duração: 1 ou 2 minutos
Material: vaso sanitário e um copo d'água
Efeito: de abertura


      Há centenas de milhares de anos a grande maioria dos seres humanos vive e morre sem conhecer a experiência que vou descrever. Ela é extremamente fácil e particularmente interessante.
      Você, como todo mundo, urina. E bebe água também. Você não sabe o que pode acontecer se
fizer as duas coisas ao mesmo tempo, mas vai descobrir com essa experiência.
      Prepare um grande copo de água. Quando começar a urinar, comece a beber a água. Você deve tentar beber sem parar, de uma vez só. Com isso, experimentará as mais estranhas sensações. A água que sai de você torna-se quase a mesma da que entra na sua boca. Você deverá imaginar subitamente, e sobretudo experimentar, uma organização do seu corpo que você até agora nem havia suspeitado ser possível. A água que você bebe parece estar saindo diretamente da sua bexiga. Em poucos segundos você perceberá um circuito direto, garganta-ureter, um percurso instantâneo estômago-bexiga, uma fisiologia impossível que no entanto você está experimentando de forma direta e indiscutível.
      Você terá inventado, em alguns segundos, um corpo delirante, simplíssimo, e que no entanto experimenta você, de forma manifesta, indubitável. Não há mais intestino, rins, tempo de espera, filtragem, diálise. A água circula livremente em você na vertical, você é atravessado pelo líquido fresco, lavado por dentro, esvaziado de uma forma singular e palpável. Seu organismo parece aberto por dentro e a água circula com agilidade entre o interior e o exterior, como um fluxo cósmico ou uma lavagem automática.
      Essa experiência, que pode ser repetida infinitas vezes e que não custa nada, trará sempre novas descobertas ou curiosas surpresas e não é considerada uma cura como a das termas.


______
POL-DROIT, Roger. 101 experiências de filosofia cotidiana. [trad. Carlos Irineu da Costa]. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. p. 80-1.

21 de outubro de 2009

Caim


      Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após o outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo do tempo, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama.
[...]


______
SARAMAGO, José. Caim. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 9-11.

14 de agosto de 2009


      Para além da porta, da janela, a vida continuava, a de todos os dias, a vida tal como os homens a organizaram para se tranquilizarem.


______
SIMENON, Georges. Os escrúpulos de Maigret. [trad. Paulo Neves]. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 169.

12 de agosto de 2009

Canção da passagem da tarde


Penetra a tarde tranquila
no escuro percurso da vista.

Além do mar que bem cultivam
os bois do sol, dentro do trigo,
quando perfeita morre a flor
no ar leve, pela grande dor
deste itinerário da vista,
se vai a tarde tranquila.


______
ESPRIU, Salvador. Quatorze. Curitiba: Travessa dos Editores, 2002. p. 22.

11 de agosto de 2009

Motivo


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.


______
MEIRELES, Cecília. Viagem/Vaga música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

10 de agosto de 2009

Alegria


As coisas alegres que provei
Eu mesmo as inventei.
Pelas graças espontâneas de Deus
Esperarei.


______
WOLFF, Fausto. O pacto de Wolffenbüttel e a recriação do homem. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 23.

Um ruído forte


      Houve um ruído forte, agudo, não longe da sua cabeça e Maigret se pôs a agitar, entre aborrecido e assustado, um dos braços fora dos lençóis. Ele tinha consciência de estar na cama, consciência também da presença da mulher que, mais acordada que ele, esperava na obscuridade sem nada ousar dizer.
      Durante alguns segundos, pelo menos, ele se enganou sobre a natureza desse ruído insistente, agressivo, imperioso. E era sempre no inverno, quando fazia muito frio, que se enganava desse modo.
      Parecia-lhe que era o despertador que tocava, embora desde o seu casamento não houvesse mais despertador na mesa de cabeceira. A coisa remontava a um tempo distante, à infância, quando ele era menino de coro e ajudava na missa das seis da manhã.
      No entanto, também ajudara na missa durante a primavera, o verão, o outono. Por que a lembrança que restou e lhe voltava automaticamente era uma lembrança de obscuridade, de frio, de dedos adormecidos, de calçados que, no caminho, faziam estalar uma película de gelo?
      Ele derrubou o copo, como acontecia com frequência, e a sra. Maigret acendeu a lâmpada de cabeceira no momento em que a mão dele atingia o telefone.
      "Maigret... Sim..."
      [...]


______
SIMENON, Maigret. Maigret e o ladrão preguiçoso. [trad. Paulo Neves]. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 11-2.

      A covardia podia trazer como consequência correr mais riscos do que a coragem mais atrevida.


______
WOOLRICH, Cornell. Impulso. In: ______. Janela indiscreta e outras histórias. [trad. Rubens Figueiredo]. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 168.

A realidade e a imagem


O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
E desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
Quatro pombas passeiam.


______
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

9 de agosto de 2009

O país das maravilhas


Não se entra no país das maravilhas,
pois ele fica do lado de fora,
não do lado de dentro. Se há saídas
que dão nele, estão certamente à orla
iridescente do meu pensamento,
jamais no centro vago do meu eu.
E se me entrego às imagens do espelho
ou da água, tendo no fundo o céu,
não pensem que me apaixonei por mim.
Não: bom é ver-se no espaço diáfano
do mundo, coisa entre coisas que há
no lume do espelho, fora de si:
peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,
um dia passo inteiro para lá.


______
CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 13.

7 de agosto de 2009

Despalavra


Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da
despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades
de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades
de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar
as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo
com as suas metáforas.
Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes,
podem ser pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender
o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens,
por eflúvios, por afeto.


______
BARROS, Manoel de. Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.

4 de agosto de 2009


Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.


______
LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 2002.

28 de julho de 2009


      O caráter acidental e contingente de sua [do mestiço] configuração racial não pode deixar de lhe revelar o caráter igualmente acidental e contingente de toda relação entre "raça" e cultura. Para ele, está na cara, de fato, algo que, de direito, ninguém atualmente pode deixar de saber: que os racismos, nacionalismos e fundamentalismos que hoje por todos os continentes tendem a se reafirmar com virulência não passam, em última análise, de tentativas cínicas ou desesperadas de renegar a consciência social - generalizada e aguçada em consequência das recentes revoluções na informática, nas comunicações e nos transportes - do caráter acidental, contingente e relativo de fronteiras, horizontes, crenças, religiões, totens, tabus, costumes, tradições, valores, culturas, etnias, nações, mundos etc.


______
CICERO, Antonio. In: As raças no caldeirão. 28/07/2009.
http://antoniocicero.blogspot.com/2009/07/as-racas-no-caldeirao.html

O coração


O coração também é um metafísico:
Estremece por formas invisíveis,
Anda a sonhar uns mundos encantados,
E a querer umas coisas impossíveis...


______
BARRETO, Tobias. Antologia dos poetas brasileiros: poesia da fase romântica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

23 de julho de 2009

Mais triste


o que pode ser mais triste –
um tigre de circo, alguém
perdido?
uma promessa quebrada
como um brinquedo, um segredo
contado, terremoto, lar
desfeito, desejo (medo)
desperdiçado?
defeito, braço direito
amputado, fósforo
molhado?
o que pode ser mais triste?
vaca, chuva, trapo?
criança calada, escravo?
poça, lago, vidro (amor
não correspondido)
embaçado?
palavra errada, guerra, marte?
pêndulo? empate?
feiúra, cegueira,
fim de festa, falta
de vontade?
(uma coisa triste de)
verdade?


______
ANTUNES, Arnaldo. 2 ou + corpos no mesmo espaço. São Paulo: Perspectiva, 1997.

17 de julho de 2009

TALESE, Gay. Vida de escritor. [trad. Donaldson M. Garschagen]. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 403.

      Estarei sofrendo de "bloqueio de escritor"? Não, você não está sofrendo "bloqueio de escritor", está apenas mostrando bom senso ao não publicar nada por enquanto. Você está mostrando consideração para com os leitores ao não lhes dar texto ruim. Muitos escritores deviam fazer o que você está fazendo -- não escrever. Já existe muito texto ruim por aí, para que mais? As estantes dos Estados Unidos estão cheias de livros de segunda classe de escritores de primeira. Muitos deles têm um público cativo e por isso os editores publicam suas besteiras. Eles publicam tudo o que vende. Mas os escritores deviam ficar bloqueados. Seria uma coisa boa para a reputação deles, para os custos de produção das editoras e para os padrões do público leitor em geral. Deveria haver um prêmio Nacional de literatura oferecido anualmente a certos escritores por não escrever.


______
TALESE, Gay. Vida de escritor. [trad. Donaldson M. Garschagen]. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 403.

14 de julho de 2009

Soneto de intimidade


Nas tardes de fazenda há muito azul demais.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.

Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve

Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.


______
MORAES, Vinicius de. Livro de sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 17.

20 de maio de 2009

Lílitchka: em lugar de uma carta


Fumo de tabaco rói o ar.
O quarto -
um capítulo do inferno de Krutchônikh.
Recorda -
atrás desta janela
pela primeira vez
apertei tuas mãos, atônito.
Hoje te sentas,
no coração - aço.
Um dia mais
e me expulsarás,
talvez, com zanga.
No teu hall escuro longamente o braço,
trêmulo, se recusa a entrar na manga.
Sairei correndo,
lançarei meu corpo à rua.
Transtornado,
tornado
louco pelo desespero.
Não o consintas,
meu amor,
meu bem,
digamos até logo agora.
De qualquer forma
o meu amor
- duro fardo por certo -
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.
Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.
Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem.
Se ela assim torturasse um poeta,
ele
trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos - rodopiante carnaval -
dispersarão as folhas dos meus livros...
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?

Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.


______
MAIAKÓVSKI, Vladímir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

18 de maio de 2009

Grafito arcaico num muro de Pompéia


Nada dura para sempre;
Mesmo brilhando como ouro,
O sol tem que mergulhar no mar.
A lua também desapareceu
Embora reluzisse até há pouco.


______
BUTTERWORTH, Alex & LAURENCE, Ray. Pompéia: a cidade viva. [trad. Marcelo Mendes & Gabriela Máximo]. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 11.

30 de abril de 2009

Inventar manchetes

Duração: cerca de 15 minutos
Material: papel, lápis
Efeito: calmante


      Você está longe de tudo, sem rádio, sem telefone, jornal ou televisão, totalmente desconectado. Precisa ter sua dose de notícias. Segundo os especialistas, a dependência das notícias é atualmente relativamente grave. Algumas pessoas precisam se injetar com sua dose de informações muitas vezes ao dia. Outras mantêm-se informadas da manhã até a noite. Podemos saber as notícias por diversos meios.
      Dessa vez você não tem nenhum recurso. Não há nenhuma máquina à mão nem esperança de ter uma. Você terá de se virar e inventar as manchetes. Não há como recebê-las, mas não será tão difícil assim produzi-las. Em termos de política interna, você pode escolher entre uma demissão de ministro, um novo conjunto de medidas (podem ser referentes a impostos, à educação, aos transportes, ao ambiente), um escândalo, um tratado, uma polêmica, uma viagem oficial. Em termos de política internacional, pode ser uma guerra, um golpe de estado, uma reunião de especialistas (o assunto pode ser questões monetárias, comércio eletrônico ou pesca) e até um atentado terrorista, um terremoto, um incêndio, uma inundação.
      Não se esqueça das novidades científicas: progressos na clonagem humana, a descoberta de tráfico de órgãos, um novo material para estocar órgãos doados. Acrescente um pouco de cultura: os filmes mais recentes, uma nova exposição, perfil de um escritor. Continue, se o coração mandar, com algumas notas sobre “pessoas”: um divórcio de uma atriz, dois casamentos de princesas, um cantor preso por excesso de velocidade.
      O toque final são as variedades. Um roubo, um assassinato, um acidente de carro. Pronto. Você tem quase tudo de que precisa, mas nada o impede de criar ainda, rapidamente, um pequeno meteoro, algumas quedas da Bolsa e até os resultados da loteria. Em caso de dificuldade na seção de notícias curtas, imagine um morto, uma personalidade política de primeiro escalão, um prêmio Nobel de literatura, uma retrospectiva sobre um cineasta famoso, opiniões dos leitores.
      O objetivo dessa experiência não é preencher um vazio. Cabe a você sentir como o fluxo de informações não cessa de se repetir, idêntico a ele mesmo, sem progresso, sem novidade. A extrema facilidade com a qual é possível fabricar uma pseudo-atualidade confirma que as notícias são o que há de menos novo. Elas repetem, indefinidamente, as misérias humanas. Essa mensagem desprovida de atrativos é decorada para fingir que traz algo de inédito. Talvez, se você repetir essa experiência de tempos em tempos, poderá concluir que essas informações não têm importância, que quase não têm realidade.
      Será isso uma informação?


______
DROIT, Roger-Pol. 101 experiências de filosofia cotidiana. [trad. Carlos Irineu da Costa]. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. p. 50-1.

Caridade


      A caridade é o que resta quando não há bondade nem justiça.


______
SARAMAGO, José. In: O caderno de Saramago. 30/04/2009.
http://caderno.josesaramago.org/2008/11/06/palavras/.

29 de abril de 2009

O alisador ou A missão fracassada do soldado Tatão Ramos


      Trecho do relatório que o delegado Gontijo dos Santos, de Guaxindi da Boca do Mato, remeteu aos escalões superiores:
      “Vai de meio semestre para cá que esta jurisdição criminal foi tomada pelos desregramentos de um indigitado que deixa, nos escritos que escreve, o nome de Chico Alisador, cuja astúcia principal consiste em escamar, no sono da madrugada, pernas e demais naturezas das meninas e damas em suas alcovas. Anda com pé de paina e some em feitio de vento. Para dar cobro a tamanho despautério, montei armadilha especial na pessoa do soldado Tatão Ramos que vesti da roupa mais fina e a cara dele empapei das pomadas mais custosas dos armarinhos, foramente uma cabeleira postiça que angariei no comércio de Ubá. Assim, em jeito de moça, de salto alto e bolsa no dedo grosso, foi Tatão dormir na casa das meninas Frazão, muito apreciadas pelos altos avantajados com que a natureza municiou seus respectivos amassadores de cadeira, coisa de ser vista no longe do olho nu. Rebocadas as meninas para lugar seguro, ficou Tatão fazendo as vezes delas e bem não tinha apagado a vela já o desnaturado era chegado, pelo que submeteu o dito Tatão a trabalho de escamação que começou na boca da noite e saiu pelo gogó da madrugada, sem que o descompetente deitasse mão nele. De manhã, sabedor do sucedido, inquiri Tatão em modo autoritativo, reprovando seu pouco-casismo e suas desconsiderações para com a Polícia Militar. Respondeu fora dos regulamentos, afiançando que de uma boa alisação ninguém nunca que podia escapar. Nesse ínterim, o nojento indivíduo passou pelo quarto de mais cinco moças e quatro viúvas, de não escapar nem a velha Dodó Reis, que já atravessou cem anos só de fazer licor de jenipapo. Na hora que intimei a dita Dodó Reis para falar no inquérito, veio com gritos e impropérios asseverando que não era pior do que as outras e até que o noturno sujeito louvou seu serviço de joelhos e partes além. Diante disso, não tem mais velha nesta jurisdição criminal que não queira dormir de janela escancarada, pelo que tive de reforçar a ronda. O pior é que essa mania contaminou até o pessoal do comércio de Guaxandi da Boca do Mato, havendo muito negociante maluco da cabeça para ser passado pela mão do indigitado Chico Alisador, por ser bom para reumatismo. O sacristão Lilico Alvarenga não quer outra coisa e até o tal do paletó lascado ele já adquiriu, o que é uma sem-vergonhice em sujeito com responsabilidade de missa e batizado.”


______
CARVALHO, José Cândido de. Os mágicos municipais. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984. p. 10-11.

Sair


Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul - o céu do dia -
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


______
CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 77.

27 de abril de 2009

Os biellenses, gente dura


         Certo dia, um camponês descia para Biella. O tempo estava tão feio que quase não dava para andar pela estrada. Mas o camponês tinha um compromisso importante e continuava a caminhar de cabeça baixa, enfrentando a chuva e a tempestade.
         Encontrou um velho que lhe disse:
         "Bom dia! Aonde vai, bom homem, com tanta pressa?"
         "Para Biella," disse o camponês sem se deter.
         "Poderia dizer ao menos: 'se Deus quiser.'"
         O camponês parou, encarou o velho e contestou:
         "Se Deus quiser vou para Biella; e, se Deus não quiser, vou do mesmo jeito."
         Ora, aconteceu que aquele velho era o Senhor.
         "Então, você irá para Biella dentro de sete anos," disse-lhe. "Nesse ínterim, dê um mergulho naquele pântano e fique por lá sete anos."
         E o camponês se transformou em rã de um só golpe, deu um salto e sumiu no pântano.
         Passaram-se sete anos. O camponês saiu do pântano, virou homem, enfiou o chapéu na cabeça e retomou a estrada para o mercado.
         Após alguns passos, eis de novo aquele velho.
         "Aonde é que vai, bom homem?"
         "Para Biella."
         "Poderia dizer: 'se Deus quiser.'"
         "Se Deus quiser, melhor; caso contrário, já conheço as regras, e posso ir sozinho para o pântano."
         E não houve jeito de arrancar nem mais uma palavra dele.


______
CALVINO, Italo. Fábulas italianas. [trad. Nilson Moulin]. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 79.

18 de abril de 2009

Pandemos: soneto 1 a Afrodite anadiômena


Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!

Que vúlcios defuratos, que inumana
sussúrrica dosntália penicela,
às trícotas relesta demiquela,
fissivirão bolíneos, ó primana!

Dentívolos palpículos, baissai!
lingâmicos dolins, refucarai!
Por mamivornas contumai a veste!

E, quando prolifarem as sangrárias,
lambidonai tutílicos anárias,
tão placitantos como o pedipeste.


______
SENA, Jorge de. Pandemos: soneto 1 a Afrodite anadiômena. In: GRÜNEWALD, José Lino (org). Grandes sonetos da nossa língua. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. p. 221.

17 de abril de 2009

Gato pensa?


Dizem que gato não pensa
mas é difícil de crer.
Já que ele também não fala
como é que se vai saber?

A verdade é que o Gatinho,
quando mija na almofada,
vai depressa se esconder:
sabe que fez coisa errada.

E se a comida está quente,
ele, antes de comer,
muito calculadamente,
toca com a pata pra ver.

Só quando a temperatura
da comida está normal,
vem ele e come afinal.

E você pode explicar
como é que ele sabia
que ela ia esfriar?


______
GULLAR, Ferreira. Poesia completa, teatro e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 416.

Ciúme


      Ciúme! "Otelo não é ciumento, é crédulo" - observou Púchkin, e só essa observação já é uma prova da profundidade incomum do nosso grande poeta. Otelo estava simplesmente com a alma em frangalhos e com toda sua visão de mundo turvada porque morrera o seu ideal. Mas Otelo não ficaria se escondendo, espionando, com olhares furtivos, ele é crédulo. Ao contrário, precisava ser açulado, incitado, atiçado com esforços extraordinários para que só assim se apercebesse da traição. Não é assim o verdadeiro ciumento. É até impossível imaginar toda desonra e decadência moral a que um ciumento é capaz de acomodar-se sem quaisquer remorsos. E note-se que nem todos são propriamente almas torpes e sórdidas. Ao contrário, de coração elevado, de amor puro, cheios de abnegação, podem ao mesmo tempo esconder-se debaixo de mesas, subornar diaristas torpes e acomodar-se à mais indecente sordidez da espionagem e da escuta atrás das portas. Otelo não poderia se conformar com a traição por nada neste mundo - deixar de perdoar não deixaria, mas se conformar, não - embora fosse de alma pacata e pura como a alma de uma criança. Não é o mesmo que acontece com o verdadeiro ciumento: é difícil imaginar a que esse ou aquele ciumento pode acomodar-se e conformar-se e o que pode perdoar! Os ciumentos são os primeiros a perdoar, e isso todas as mulheres sabem. O ciumento pode e é capaz de perdoar depressa demais (claro, após uma terrível cena inicial), por exemplo, uma traição já quase provada, os abraços e beijos já presenciados por ele mesmo, se, por exemplo, puder ao mesmo tempo asseverar-se, de alguma maneira, de que isso aconteceu "pela última vez" e que a partir desse momento seu rival desaparecerá, irá para o fim do mundo, ou ele mesmo a levará para algum lugar em que esse terrível rival não voltará a aparecer. É claro que a conciliação acontecerá apenas por uma hora, porque, mesmo que o rival tenha realmente desaparecido, amanhã mesmo ele inventará outro, um novo, e voltará a ter ciúmes. Poder-se-ia pensar: que amor é esse que precisa ser tão vigiado, e de que vale um amor que precisa ser tão intensamente vigiado? Pois é isso que nunca irá compreender o verdadeiro ciumento; não obstante, palavra, entre eles aparecem pessoas até de coração elevado. Também é digno de nota que, estando essas mesmas pessoas de corações elevados em algum cubículo, escutando atrás da porta e espionando, ainda que, com "seus corações elevados", compreendam claramente toda a desonra em que caíram voluntariamente, mesmo assim nunca sentem remorso, ao menos enquanto se encontram nesse cubículo.


______
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov (vol. 2). [trad. Paulo Bezerra]. São Paulo: Ed. 34, 2008. p.508-9.

15 de abril de 2009

Belo belo


Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo – que foi? passou – de tantas estrelas
[cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

– Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.


______
BANDEIRA, Manuel. Bandeira de bolso: uma antologia poética. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 108-9.

14 de abril de 2009

Eu e as flores


Quando eu passo
perto das flores
quase elas dizem assim:
Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim
(...)


______
CAVAQUINHO, Nelson. Eu e as flores.

Sobriedade


      Ali onde a sobriedade te abandona, ali se encontra o limite de teu pensamento.


______
HÖLDERLIN, Friedrich. apud RAMOS, Nuno. Rugas: sobre Nelson Cavaquinho. Revista Serrote. São Paulo: n.1, p.14, mar. 2009.

9 de abril de 2009

Monólogo


Estar atento diante do ignorado,
Reconhecer-se no desconhecido,
Olhar o mundo, o espaço iluminado,
E compreender o que não tem sentido.
Guardar o que não pode ser guardado,
Perder o que não pode ser perdido.
- É preciso ser puro, mas cuidado!
É preciso ser livre, mas sentido!
É preciso paciência, e que impaciência!
É preciso pensar, ou esquecer,
E conter a violência, com prudência,
Qual desarmada vítima ao querer
Vingar-se, sim, vingar-se da existência,
E, misteriosamente, não poder.


______
MILANO, Dante. Melhores poemas. São Paulo: Global, 1998.

Galo galo


O galo
no saguão quieto.

Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.

De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.

Mede os passos. Para.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio
– que faço entre coisas?
– de que me defendo?

                                Anda

no saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.

Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e o duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apoia
tal arquitetura?

Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora?

Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório?

Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa.

Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.

Vê-se: o canto é inútil.

O galo permanece – apesar
de todo o seu porte marcial –
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave guerreira!

Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
            não seria tão rouco
e sangrento

                 Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.


______
GULLAR, Ferreira. Galo galo. In: ______. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. p. 11-2.

Uma luz do chão


(...) pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo, acender uma luz qualquer. Uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens.


______
GULLAR, Ferreira. Sobre arte, sobre poesia (uma luz do chão). Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. p. 152.

Rakítin


(...) [Senhora Khokhlakova] considerava Rakítin o jovem mais honrado e religioso, tamanha era a capacidade dele de se dar com todo mundo e apresentar-se diante de cada um como este gostaria de vê-lo, desde que visse nisso o mínimo de vantagem para si mesmo.


______
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov (vol. 2). [trad. Paulo Bezerra]. São Paulo: Ed. 34, 2008. p. 445.

8 de abril de 2009

Reflexão


Está fora
de meu alcance
o meu fim

Sei só até
onde sou

contemporâneo
de mim


______
GULLAR, Ferreira. Muitas vozes. Rio de Janeiro, José Olympio, 1999.

6 de abril de 2009

Poesia filha da mãe


no dia da poesia
minha mãe nasceu
será que sou filho de um verso?
ou o inverso é que sou eu?

tô me catando pra datas mas o fato é que minha mãe não
[podia ter morrido assim

tô me lascando em pedaços mas o triste é que o trato tem
[que ser levado até o fim

não tenho jeito de poeta
não acho feio jogar peteca
não ando satisfeito na minha cueca

viva a poesia
que dispara letras frias com sangue quente nas veias
na metade das minhas pernas
moram duas longas meias.


______
MARTINS, Tião. Poesia & Cia. 06/04/09. http://tiaomartins.blogspot.com/2009/03/poesia-filha-da-mae.html

Vulto


palavra,
não estou sozinha.
essa minha clausura
admite companhia
: poesia que me povoa
verso que apavora
fantasma, que é Pessoa


______
TARELHO, Valéria. Vulto. In: BACCA, Ademir Antonio (org). Poesia do Brasil (vol. 3). Bento Gonçalves: Grafite, 2006. p. 202.

2 de abril de 2009

Contos de fada


      Fairy tales are more than true: not because they tell us that dragons exist, but because they tell us that dragons can be beaten.


      Contos de fada são mais do que verdadeiros: não por que nos dizem que dragões existem, mas por que nos dizem que podemos derrotá-los.

______
CHESTERTON, G. K.

Impressionista


Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.


______
PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1991.

1 de abril de 2009

Metade da vida


Peras amarelas
E rosas silvestres
Da paisagem sobre a
Lagoa.

Ó cisnes graciosos,
Bêbedos de beijos,
Enfiando a cabeça
Na água santa e sóbria!

Ai de mim, aonde, se
É inverno agora, achar as
Flores? e aonde
O calor do sol
E a sombra da terra?
Os muros avultam
Mudos e frios; à fria nortada
rangem os cata-ventos.

______
HÖLDERLIN, Friedrich. Metade da vida. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 401.


[tradução de Antonio Cicero]

Com peras amarelas suspende-se,
Plena de rosas silvestres,
A terra sobre o lago,
Ó cisnes graciosos,
E, bêbados de beijos,
Mergulhais a cabeça
Na água santa e sóbria.

Ai de mim, onde, se
É inverno, achar as flores, e onde
A luz do sol
E as sombras da terra?
Os muros estão
Mudos e frios, ao vento
batem as bandeirolas.

25 de março de 2009

A cortesia dos cegos

O poeta lê seus versos para os cegos.
Não esperava que fosse tão difícil.
Sua voz fraqueja.
Suas mãos tremem.
Ele sente que cada frase
está submetida à prova da escuridão.
Ele tem que se virar sozinho,
sem cores e luzes.
Uma aventura perigosa
para as estrelas da poesia,
para as manhãs, o arco-íris, as nuvens, os néons, a lua,
para o peixe tão cintilante sob a água
e o falcão tão alto e quieto no céu.
Ele lê – pois já não pode parar –
sobre o menino de casaco amarelo num campo verde,
telhados vermelhos que se contam no vale,
números irrequietos na camisa dos jogadores
e a desconhecida, nua, na fresta da porta.
Ele gostaria de omitir – embora seja impossível –
 todos os santos no teto da catedral,
a mão que acena do trem em partida,
a lente do microscópio, o anel e seu brilho,
as telas de cinema, os espelhos, os álbuns de
fotografia.
Mas é enorme a cortesia dos cegos,
admirável a sua compreensão, a sua grandeza.
Eles escutam, sorriem e aplaudem.
Um deles até se aproxima
com o livro de cabeça para baixo
pedindo um autógrafo invisível.

______ 
SZYMBORSKA, Wislawa. A cortesia dos cegos. [trad. Sylvio Fraga Neto & Danuta Haczyn'ska da Nóbrega]. Piauí, Rio de Janeiro, n. 8, p. 63, mai. 2007.

12 de março de 2009

Sentido


Se a vida é hoje frangalhos,
lhe colho os retalhos que,
mesmo descosidos,
perfazem tecido:
sentido
é raspar beleza
da aspereza do cotidiano:
pano por pano, não por inteira,
a vida é alegre de alguma maneira.



______
BOSCO, Francisco. Atrás da porta. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1997. p. 28.

Por isso crio


Há que exercitar-se no tornar olvidável
e aplicar muita vez no ouvido algodões;
fazer-se, às catalepsias, impermeável;
aferrar-se a pragmáticas convicções.

Há que agarrar as rédeas de si
e evitar a todo custo tal pilhéria
(digo-o pois já a senti):
"a vida não resiste a uma pergunta séria".

Contradigo-me. Calo meu fundo.
Não deixo vir à tona este inútil mundo.
Uma verdade a que define o Saber
como sendo o bem lidar com o não-saber.

Quero viver, por isso crio
microcertezas num macrovazio.


______
BOSCO, Francisco. Atrás da porta. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1997. p. 27.

5 de março de 2009

Finados de Cartola


queixo-me aos mortos
mas que bobagem
os mortos não falam
simplesmente os mortos
exalam
o perfume que roubam
da vida.


______
MARTINS, Tião. Finados de Cartola. In: Poesia & Cia. 05/03/2009. http://tiaomartins.blogspot.com/2006/11/finados-de-cartola.html

Sem estrela


A morte ia comigo e eu, com ela.
E vi o seu ridículo vestido,
o andar desajeitado e sem sentido,
o rosto com penteado de donzela,

sendo tão velha, velha, no ruído
de suas meias e sapatos de heras.
Então não resisti e me ri dela,
caçoava de seus gestos confundidos.

E desta sisudez que nada espera,
mas sabe que na vida um só gemido
pode fazê-la emudecer. Insisto

em rir de sua passagem sem estrela,
sem grandeza nenhuma. E se resisto,
é porque está em mim quem vai vencê-la.


______
NEJAR, Carlos. Breve história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 193.

4 de março de 2009

Chamado


o branco
encobre cores
que a brasa abraça
e abrevia em cinzas

havia um poema
na folha em chama

há meus ais
nos sinais de fumaça


______
TARELHO, Valéria. Chamado. In: Valéria Tarelho: seleção de poemas. 04/03/2009. http://valeriatarelho.wordpress.com/2008/10/19/chamado/

3 de março de 2009

O sociopata, nosso vizinho

    Na semana passada, cheguei de volta a São Paulo vindo de Nova York. Todos de pé nos corredores da aeronave, esperávamos a abertura das portas. Eis que um jovem, que estava atrás de mim, disse, num inglês duvidoso, Excuse me e tentou me ultrapassar, para ele (só ele) avançar na fila.
    Fiz notar ao jovem que todos estávamos parados e indo para o mesmo lugar. Minha observação não produziu nele nenhuma vergonha: empurrou e se insinuou na minha frente, para repetir a mesma manobra com outros passageiros. Comentei com minha companheira: "É incrível como existem sociopatas".
    Justiça divina: na fila da alfândega, o jovem estava bem atrás da gente. Resta explicar meu "diagnóstico".
    Sumariamente, o quadro da sociopatia (ou psicopatia, como dizia a psiquiatria clássica) é o seguinte: incapacidade de se conformar às normas sociais, aptidão para enganar e manipular, falta de preocupação com os outros, falta de remorso e de sentimento de responsabilidade.
    Ocasionalmente, qualquer um é capaz de comportamentos desse tipo. Mas o sociopata os adota como sua única maneira de ser e de se relacionar com o mundo: ele se impõe na vida desrespeitando os outros e as normas coletivas sem sentir culpa alguma.
    Os sociopatas não são necessariamente criminosos, e nem todos os criminosos são sociopatas. O membro de uma gangue pode agir como um sociopata entre nós, mas sentir-se responsável pela segurança dos outros membros da gangue e culpado por falhar em suas tarefas. Inversamente, um cidadão-modelo, de grande êxito profissional e social, pode dever seu sucesso a uma boa sociopatia. Detalhe: os sociopatas são numerosos; nos EUA, 4% da população.
    Num livro recente, The sociopath next door [O sociopata da casa ao lado], publicado pela Broadway Books, a psicóloga Martha Stout propõe uma interpretação valiosa da personalidade do sociopata.
    O pressuposto, com o qual todos concordam, é que o sociopata sabe fazer a diferença entre o bem e o mal, mas, ao optar pelo mal, não conhece remorso ou culpa, pois não tem consciência moral.
    Ora, em psicopatologia, ter consciência moral é uma qualidade problemática, pois uma boa parte do sofrimento neurótico é devida ao excesso de interdições auto-impostas e de culpas desnecessárias. Alguns diriam que um pouco de sociopatia ajudaria nossos neuróticos.
    O problema, observa Stout, é que sobretudo os psicanalistas confundem a consciência moral com o superego, ou seja, com a instância psíquica herdeira das interdições que foram decisivas na formação do sujeito, desde a proibição de dormir com a mãe até a proibição de fazer cocô nas calças. A consciência moral aparece assim como uma guardiã encarregada de nos impor limites, dos quais o sociopata zombaria e com os quais o neurótico infernizaria a própria vida.
    Ora, Stout propõe conceber a consciência moral de um jeito diferente: não como fonte das interdições que nos constrangem, mas como tesouro das condições que permitem nossos laços afetivos, ou seja, a consciência moral seria constituída pelas obrigações que acompanham nossos sentimentos positivos pelos outros.
    Se não mato, roubo, prevarico, não é porque obedeço a prescrições estabelecidas, mas é pelo vínculo afetivo que me liga aos outros que respeito e amo. Ajo corretamente porque desejo poupá-los dos desgostos que minha conduta imoral lhes acarretaria.
    Na visão de Stout, o sociopata é, antes de mais nada, um sujeito que não consegue estabelecer laços afetivos: ele não conhece obrigações morais porque não sabe se juntar aos outros pelo respeito, pela amizade ou pelo amor.
    De fato, várias pesquisas mostram que as pessoas "normais" reagem de maneira diferenciada a palavras carregadas de emoção. Diante de palavras como "amor", "ódio", "dor", "felicidade", "mãe", a atividade cerebral dos "normais" é mais intensa e mais rápida do que diante de palavras neutras, como "mesa", "cadeira", "número 15". Os sociopatas, ao contrário, apresentam a mesma intensidade e o mesmo tempo de reação em ambos os casos. Seu déficit é afetivo, e sua falha moral é consequência desse déficit.
    O jovem passageiro que descrevi foi capaz de uma pequena sociopatia porque não reconheceu seus companheiros de viagem como um grupo do qual ele fazia parte. O uso do inglês talvez lhe tenha permitido sentir-se estrangeiro a essa mínima simpatia coletiva.
    Nestes dias, o noticiário fala de uma sociopatia generalizada no coração das instituições republicanas. De acordo com a proposta de Stout, ela é efeito não de alguma fraqueza dos grandes princípios, mas da falta de um "nós", ou seja, de um laço coletivo nacional, em que o companheirismo e o sentimento de um destino comum implicariam um respeito recíproco básico.

    Notas:
1) Acabo de ler o novo livro de Flávio Gikovate, O mal, o bem, e mais além. Gikovate situa a moralidade de uma maneira análoga à escolhida por Stout: o que nos torna sujeitos morais é nossa capacidade de amar.
2) Assisti, com atraso, a A queda! as últimas horas de Hitler. O Hitler do filme de Hirschbiegel, magistralmente interpretado por Bruno Ganz, é um sociopata perfeito.
______
CALLIGARIS, Contardo. Quinta-coluna. São Paulo: Publifolha, 2008. p. 135-8.

Deus e Ratzinger

      "Deus é o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio."
 ______
SARAMAGO, José. Deus e Ratzinger. In: Outros cadernos de Saramago. 09/10/2008. https://caderno.josesaramago.org/5597.html

O contemplador

      O pintor Kramskói tem um quadro magnífico chamado O contemplador. Representa um bosque no inverno e, numa trilha do bosque, um mujiquezinho embrenhado, metido num caftan esfarrapado e calçando lapti: está parado sozinho na mais profunda solidão, postado e como que mergulhado em meditação, só que não está pensando e sim “contemplando” algo. Se alguém o tocasse, ele estremeceria e o olharia como se tivesse despertado, mas sem compreender nada. É verdade que voltaria a si no mesmo instante, mas se alguém lhe perguntasse em que estava pensando ali postado, ele com certeza não se lembraria de nada, mas seguramente conservaria em si a impressão sob a qual se encontrava durante sua contemplação. Essas impressões lhe são caras e é provável que ele as venha acumulando, sem se dar conta e até sem tomar consciência – e também sem saber, é claro, por que e para quê. Súbito, depois de haver acumulado impressões durante muitos anos, pode largar tudo e ir para Jerusalém em peregrinação e tentando salvar a alma, como também pode, num átimo, atear fogo à aldeia natal e pode igualmente fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Há bastante contempladores no meio do povo.
______
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov (vol. 1). [trad. Paulo Bezerra]. São Paulo: Ed. 34, 2008. p. 187.

Lapti= Calçado de cascas de tília. (n. do t.)