14 de agosto de 2009


      Para além da porta, da janela, a vida continuava, a de todos os dias, a vida tal como os homens a organizaram para se tranquilizarem.


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SIMENON, Georges. Os escrúpulos de Maigret. [trad. Paulo Neves]. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 169.

12 de agosto de 2009

Canção da passagem da tarde


Penetra a tarde tranquila
no escuro percurso da vista.

Além do mar que bem cultivam
os bois do sol, dentro do trigo,
quando perfeita morre a flor
no ar leve, pela grande dor
deste itinerário da vista,
se vai a tarde tranquila.


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ESPRIU, Salvador. Quatorze. Curitiba: Travessa dos Editores, 2002. p. 22.

11 de agosto de 2009

Motivo


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.


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MEIRELES, Cecília. Viagem/Vaga música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

10 de agosto de 2009

Alegria


As coisas alegres que provei
Eu mesmo as inventei.
Pelas graças espontâneas de Deus
Esperarei.


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WOLFF, Fausto. O pacto de Wolffenbüttel e a recriação do homem. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 23.

Um ruído forte


      Houve um ruído forte, agudo, não longe da sua cabeça e Maigret se pôs a agitar, entre aborrecido e assustado, um dos braços fora dos lençóis. Ele tinha consciência de estar na cama, consciência também da presença da mulher que, mais acordada que ele, esperava na obscuridade sem nada ousar dizer.
      Durante alguns segundos, pelo menos, ele se enganou sobre a natureza desse ruído insistente, agressivo, imperioso. E era sempre no inverno, quando fazia muito frio, que se enganava desse modo.
      Parecia-lhe que era o despertador que tocava, embora desde o seu casamento não houvesse mais despertador na mesa de cabeceira. A coisa remontava a um tempo distante, à infância, quando ele era menino de coro e ajudava na missa das seis da manhã.
      No entanto, também ajudara na missa durante a primavera, o verão, o outono. Por que a lembrança que restou e lhe voltava automaticamente era uma lembrança de obscuridade, de frio, de dedos adormecidos, de calçados que, no caminho, faziam estalar uma película de gelo?
      Ele derrubou o copo, como acontecia com frequência, e a sra. Maigret acendeu a lâmpada de cabeceira no momento em que a mão dele atingia o telefone.
      "Maigret... Sim..."
      [...]


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SIMENON, Maigret. Maigret e o ladrão preguiçoso. [trad. Paulo Neves]. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 11-2.

      A covardia podia trazer como consequência correr mais riscos do que a coragem mais atrevida.


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WOOLRICH, Cornell. Impulso. In: ______. Janela indiscreta e outras histórias. [trad. Rubens Figueiredo]. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 168.

A realidade e a imagem


O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
E desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
Quatro pombas passeiam.


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BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

9 de agosto de 2009

O país das maravilhas


Não se entra no país das maravilhas,
pois ele fica do lado de fora,
não do lado de dentro. Se há saídas
que dão nele, estão certamente à orla
iridescente do meu pensamento,
jamais no centro vago do meu eu.
E se me entrego às imagens do espelho
ou da água, tendo no fundo o céu,
não pensem que me apaixonei por mim.
Não: bom é ver-se no espaço diáfano
do mundo, coisa entre coisas que há
no lume do espelho, fora de si:
peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,
um dia passo inteiro para lá.


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CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 13.

7 de agosto de 2009

Despalavra


Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da
despalavra.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
humanas.
Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades
de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades
de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar
as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo
com as suas metáforas.
Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes,
podem ser pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender
o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens,
por eflúvios, por afeto.


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BARROS, Manoel de. Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.

4 de agosto de 2009


Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.


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LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense, 2002.