19 de fevereiro de 2014

Quem se defende

Quem se defende porque lhe tiram o ar
Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando vocês se defendem porque lhe tiram o pão.
E no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre
Não lhe é permitido se defender.

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BRECHT, Bertolt. Quem se defende. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p 73.

Da amabilidade do mundo

1

Numa noite fria, nessa terra crua
Cada qual nasceu, uma criança nua.
E ali ficou, criatura sem dono
Quando uma mulher o envolveu num pano.

2

Ninguém o chamou, não era necessário.
Para trazê-lo não houve emissário.
Era um desconhecido, ser sem proteção
Quando um homem o tomou pela mão.

3

Numa noite fria, nessa terra crua
Cada qual leva a morte que é sua.
Cada homem certamente amou a vida
Coberto por palmos de terra batida.


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BRECHT, Bertolt. Da amabilidade do mundo. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 45.

14 de fevereiro de 2014

Da complacência da natureza


Ah, a jarra de leite espumante inda busca
A boca babosa e sem dentes do velho senhor.
Ah, na perna do assassino que foge
Esfrega-se o cão à procura de amor.

Ah, o homem que fora da aldeia abusa da criança
Ainda recebe dos olmos a sombra gentil.
E suas pegadas sangrentas, bandidos, graças
À poeira cega e risonha ninguém viu.

E também o vento, aos gritos náufragos no mar
Mistura o sussurro da folhagem na orla
E levanta cortês o avental pobre da moça
Para que o forasteiro com sífilis a aprecie melhor.

E à noite o gemido fundo e lascivo da mulher
Cobre o choro da criança no canto do quarto.
E na mão que bateu no menino cai carinhosa
A maçã da árvore mais exuberante de um ano farto.

Ah, como brilha o olho claro da criança
Vendo o pai deitar à terra o boi e sacar o punhal!
E como arfam as mulheres o peito onde mamaram seus filhos
Vendo as tropas cruzarem a vila ao som da banda marcial.

Ah, nossas mães têm seu preço, nossos filhos se aviltam
Pois os marujos do barco que afunda anseiam qualquer pedaço de chão
E o moribundo só implora do mundo poder ainda lutar e
Alcançar o canto do galo e enxergar da aurora o primeiro clarão.

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BRECHT, Bertolt. Da complacência da natureza. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 44.

12 de fevereiro de 2014

Hino a Deus


1

No fundo dos vales escuros morrem os famintos.
Mas você lhes mostra o pão e os deixa morrer.
Mas você reina eterno e invisível
Radiante e cruel, sobre o plano infinito.

2

Deixou os jovens morrerem, e os que fruíam a vida
Mas os que desejavam morrer, não permitiu...
Muitos daqueles que agora apodrecem
Acreditavam em você, e morreram confiantes.

3

Deixou os pobres pobres, ano após ano
Porque o desejo deles era mais belo que o seu céu
Infelizmente morreram antes que chegasse com a luz
Morreram bem-aventurados, no entanto - e apodreceram
                      imediatamente.

4

Muitos dizem que você não existe e que é melhor assim.
Mas como pode não existir o que pode assim enganar?
Se tantos vivem de você, e de outro modo não poderiam morrer -
Diga-me, que importância pode ter então que você não exista?

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BRECHT, Bertolt. Hino a Deus. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 13.