25 de março de 2009

A cortesia dos cegos

O poeta lê seus versos para os cegos.
Não esperava que fosse tão difícil.
Sua voz fraqueja.
Suas mãos tremem.
Ele sente que cada frase
está submetida à prova da escuridão.
Ele tem que se virar sozinho,
sem cores e luzes.
Uma aventura perigosa
para as estrelas da poesia,
para as manhãs, o arco-íris, as nuvens, os néons, a lua,
para o peixe tão cintilante sob a água
e o falcão tão alto e quieto no céu.
Ele lê – pois já não pode parar –
sobre o menino de casaco amarelo num campo verde,
telhados vermelhos que se contam no vale,
números irrequietos na camisa dos jogadores
e a desconhecida, nua, na fresta da porta.
Ele gostaria de omitir – embora seja impossível –
 todos os santos no teto da catedral,
a mão que acena do trem em partida,
a lente do microscópio, o anel e seu brilho,
as telas de cinema, os espelhos, os álbuns de
fotografia.
Mas é enorme a cortesia dos cegos,
admirável a sua compreensão, a sua grandeza.
Eles escutam, sorriem e aplaudem.
Um deles até se aproxima
com o livro de cabeça para baixo
pedindo um autógrafo invisível.

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SZYMBORSKA, Wislawa. A cortesia dos cegos. [trad. Sylvio Fraga Neto & Danuta Haczyn'ska da Nóbrega]. Piauí, Rio de Janeiro, n. 8, p. 63, mai. 2007.

12 de março de 2009

Sentido


Se a vida é hoje frangalhos,
lhe colho os retalhos que,
mesmo descosidos,
perfazem tecido:
sentido
é raspar beleza
da aspereza do cotidiano:
pano por pano, não por inteira,
a vida é alegre de alguma maneira.



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BOSCO, Francisco. Atrás da porta. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1997. p. 28.

Por isso crio


Há que exercitar-se no tornar olvidável
e aplicar muita vez no ouvido algodões;
fazer-se, às catalepsias, impermeável;
aferrar-se a pragmáticas convicções.

Há que agarrar as rédeas de si
e evitar a todo custo tal pilhéria
(digo-o pois já a senti):
"a vida não resiste a uma pergunta séria".

Contradigo-me. Calo meu fundo.
Não deixo vir à tona este inútil mundo.
Uma verdade a que define o Saber
como sendo o bem lidar com o não-saber.

Quero viver, por isso crio
microcertezas num macrovazio.


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BOSCO, Francisco. Atrás da porta. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1997. p. 27.

5 de março de 2009

Finados de Cartola


queixo-me aos mortos
mas que bobagem
os mortos não falam
simplesmente os mortos
exalam
o perfume que roubam
da vida.


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MARTINS, Tião. Finados de Cartola. In: Poesia & Cia. 05/03/2009. http://tiaomartins.blogspot.com/2006/11/finados-de-cartola.html

Sem estrela


A morte ia comigo e eu, com ela.
E vi o seu ridículo vestido,
o andar desajeitado e sem sentido,
o rosto com penteado de donzela,

sendo tão velha, velha, no ruído
de suas meias e sapatos de heras.
Então não resisti e me ri dela,
caçoava de seus gestos confundidos.

E desta sisudez que nada espera,
mas sabe que na vida um só gemido
pode fazê-la emudecer. Insisto

em rir de sua passagem sem estrela,
sem grandeza nenhuma. E se resisto,
é porque está em mim quem vai vencê-la.


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NEJAR, Carlos. Breve história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 193.

4 de março de 2009

Chamado


o branco
encobre cores
que a brasa abraça
e abrevia em cinzas

havia um poema
na folha em chama

há meus ais
nos sinais de fumaça


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TARELHO, Valéria. Chamado. In: Valéria Tarelho: seleção de poemas. 04/03/2009. http://valeriatarelho.wordpress.com/2008/10/19/chamado/

3 de março de 2009

O sociopata, nosso vizinho

    Na semana passada, cheguei de volta a São Paulo vindo de Nova York. Todos de pé nos corredores da aeronave, esperávamos a abertura das portas. Eis que um jovem, que estava atrás de mim, disse, num inglês duvidoso, Excuse me e tentou me ultrapassar, para ele (só ele) avançar na fila.
    Fiz notar ao jovem que todos estávamos parados e indo para o mesmo lugar. Minha observação não produziu nele nenhuma vergonha: empurrou e se insinuou na minha frente, para repetir a mesma manobra com outros passageiros. Comentei com minha companheira: "É incrível como existem sociopatas".
    Justiça divina: na fila da alfândega, o jovem estava bem atrás da gente. Resta explicar meu "diagnóstico".
    Sumariamente, o quadro da sociopatia (ou psicopatia, como dizia a psiquiatria clássica) é o seguinte: incapacidade de se conformar às normas sociais, aptidão para enganar e manipular, falta de preocupação com os outros, falta de remorso e de sentimento de responsabilidade.
    Ocasionalmente, qualquer um é capaz de comportamentos desse tipo. Mas o sociopata os adota como sua única maneira de ser e de se relacionar com o mundo: ele se impõe na vida desrespeitando os outros e as normas coletivas sem sentir culpa alguma.
    Os sociopatas não são necessariamente criminosos, e nem todos os criminosos são sociopatas. O membro de uma gangue pode agir como um sociopata entre nós, mas sentir-se responsável pela segurança dos outros membros da gangue e culpado por falhar em suas tarefas. Inversamente, um cidadão-modelo, de grande êxito profissional e social, pode dever seu sucesso a uma boa sociopatia. Detalhe: os sociopatas são numerosos; nos EUA, 4% da população.
    Num livro recente, The sociopath next door [O sociopata da casa ao lado], publicado pela Broadway Books, a psicóloga Martha Stout propõe uma interpretação valiosa da personalidade do sociopata.
    O pressuposto, com o qual todos concordam, é que o sociopata sabe fazer a diferença entre o bem e o mal, mas, ao optar pelo mal, não conhece remorso ou culpa, pois não tem consciência moral.
    Ora, em psicopatologia, ter consciência moral é uma qualidade problemática, pois uma boa parte do sofrimento neurótico é devida ao excesso de interdições auto-impostas e de culpas desnecessárias. Alguns diriam que um pouco de sociopatia ajudaria nossos neuróticos.
    O problema, observa Stout, é que sobretudo os psicanalistas confundem a consciência moral com o superego, ou seja, com a instância psíquica herdeira das interdições que foram decisivas na formação do sujeito, desde a proibição de dormir com a mãe até a proibição de fazer cocô nas calças. A consciência moral aparece assim como uma guardiã encarregada de nos impor limites, dos quais o sociopata zombaria e com os quais o neurótico infernizaria a própria vida.
    Ora, Stout propõe conceber a consciência moral de um jeito diferente: não como fonte das interdições que nos constrangem, mas como tesouro das condições que permitem nossos laços afetivos, ou seja, a consciência moral seria constituída pelas obrigações que acompanham nossos sentimentos positivos pelos outros.
    Se não mato, roubo, prevarico, não é porque obedeço a prescrições estabelecidas, mas é pelo vínculo afetivo que me liga aos outros que respeito e amo. Ajo corretamente porque desejo poupá-los dos desgostos que minha conduta imoral lhes acarretaria.
    Na visão de Stout, o sociopata é, antes de mais nada, um sujeito que não consegue estabelecer laços afetivos: ele não conhece obrigações morais porque não sabe se juntar aos outros pelo respeito, pela amizade ou pelo amor.
    De fato, várias pesquisas mostram que as pessoas "normais" reagem de maneira diferenciada a palavras carregadas de emoção. Diante de palavras como "amor", "ódio", "dor", "felicidade", "mãe", a atividade cerebral dos "normais" é mais intensa e mais rápida do que diante de palavras neutras, como "mesa", "cadeira", "número 15". Os sociopatas, ao contrário, apresentam a mesma intensidade e o mesmo tempo de reação em ambos os casos. Seu déficit é afetivo, e sua falha moral é consequência desse déficit.
    O jovem passageiro que descrevi foi capaz de uma pequena sociopatia porque não reconheceu seus companheiros de viagem como um grupo do qual ele fazia parte. O uso do inglês talvez lhe tenha permitido sentir-se estrangeiro a essa mínima simpatia coletiva.
    Nestes dias, o noticiário fala de uma sociopatia generalizada no coração das instituições republicanas. De acordo com a proposta de Stout, ela é efeito não de alguma fraqueza dos grandes princípios, mas da falta de um "nós", ou seja, de um laço coletivo nacional, em que o companheirismo e o sentimento de um destino comum implicariam um respeito recíproco básico.

    Notas:
1) Acabo de ler o novo livro de Flávio Gikovate, O mal, o bem, e mais além. Gikovate situa a moralidade de uma maneira análoga à escolhida por Stout: o que nos torna sujeitos morais é nossa capacidade de amar.
2) Assisti, com atraso, a A queda! as últimas horas de Hitler. O Hitler do filme de Hirschbiegel, magistralmente interpretado por Bruno Ganz, é um sociopata perfeito.
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CALLIGARIS, Contardo. Quinta-coluna. São Paulo: Publifolha, 2008. p. 135-8.

Deus e Ratzinger

      "Deus é o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio."
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SARAMAGO, José. Deus e Ratzinger. In: Outros cadernos de Saramago. 09/10/2008. https://caderno.josesaramago.org/5597.html

O contemplador

      O pintor Kramskói tem um quadro magnífico chamado O contemplador. Representa um bosque no inverno e, numa trilha do bosque, um mujiquezinho embrenhado, metido num caftan esfarrapado e calçando lapti: está parado sozinho na mais profunda solidão, postado e como que mergulhado em meditação, só que não está pensando e sim “contemplando” algo. Se alguém o tocasse, ele estremeceria e o olharia como se tivesse despertado, mas sem compreender nada. É verdade que voltaria a si no mesmo instante, mas se alguém lhe perguntasse em que estava pensando ali postado, ele com certeza não se lembraria de nada, mas seguramente conservaria em si a impressão sob a qual se encontrava durante sua contemplação. Essas impressões lhe são caras e é provável que ele as venha acumulando, sem se dar conta e até sem tomar consciência – e também sem saber, é claro, por que e para quê. Súbito, depois de haver acumulado impressões durante muitos anos, pode largar tudo e ir para Jerusalém em peregrinação e tentando salvar a alma, como também pode, num átimo, atear fogo à aldeia natal e pode igualmente fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Há bastante contempladores no meio do povo.
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DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov (vol. 1). [trad. Paulo Bezerra]. São Paulo: Ed. 34, 2008. p. 187.

Lapti= Calçado de cascas de tília. (n. do t.)