28 de julho de 2009


      O caráter acidental e contingente de sua [do mestiço] configuração racial não pode deixar de lhe revelar o caráter igualmente acidental e contingente de toda relação entre "raça" e cultura. Para ele, está na cara, de fato, algo que, de direito, ninguém atualmente pode deixar de saber: que os racismos, nacionalismos e fundamentalismos que hoje por todos os continentes tendem a se reafirmar com virulência não passam, em última análise, de tentativas cínicas ou desesperadas de renegar a consciência social - generalizada e aguçada em consequência das recentes revoluções na informática, nas comunicações e nos transportes - do caráter acidental, contingente e relativo de fronteiras, horizontes, crenças, religiões, totens, tabus, costumes, tradições, valores, culturas, etnias, nações, mundos etc.


______
CICERO, Antonio. In: As raças no caldeirão. 28/07/2009.
http://antoniocicero.blogspot.com/2009/07/as-racas-no-caldeirao.html

O coração


O coração também é um metafísico:
Estremece por formas invisíveis,
Anda a sonhar uns mundos encantados,
E a querer umas coisas impossíveis...


______
BARRETO, Tobias. Antologia dos poetas brasileiros: poesia da fase romântica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

23 de julho de 2009

Mais triste


o que pode ser mais triste –
um tigre de circo, alguém
perdido?
uma promessa quebrada
como um brinquedo, um segredo
contado, terremoto, lar
desfeito, desejo (medo)
desperdiçado?
defeito, braço direito
amputado, fósforo
molhado?
o que pode ser mais triste?
vaca, chuva, trapo?
criança calada, escravo?
poça, lago, vidro (amor
não correspondido)
embaçado?
palavra errada, guerra, marte?
pêndulo? empate?
feiúra, cegueira,
fim de festa, falta
de vontade?
(uma coisa triste de)
verdade?


______
ANTUNES, Arnaldo. 2 ou + corpos no mesmo espaço. São Paulo: Perspectiva, 1997.

17 de julho de 2009

TALESE, Gay. Vida de escritor. [trad. Donaldson M. Garschagen]. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 403.

      Estarei sofrendo de "bloqueio de escritor"? Não, você não está sofrendo "bloqueio de escritor", está apenas mostrando bom senso ao não publicar nada por enquanto. Você está mostrando consideração para com os leitores ao não lhes dar texto ruim. Muitos escritores deviam fazer o que você está fazendo -- não escrever. Já existe muito texto ruim por aí, para que mais? As estantes dos Estados Unidos estão cheias de livros de segunda classe de escritores de primeira. Muitos deles têm um público cativo e por isso os editores publicam suas besteiras. Eles publicam tudo o que vende. Mas os escritores deviam ficar bloqueados. Seria uma coisa boa para a reputação deles, para os custos de produção das editoras e para os padrões do público leitor em geral. Deveria haver um prêmio Nacional de literatura oferecido anualmente a certos escritores por não escrever.


______
TALESE, Gay. Vida de escritor. [trad. Donaldson M. Garschagen]. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 403.

14 de julho de 2009

Soneto de intimidade


Nas tardes de fazenda há muito azul demais.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.

Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve

Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.


______
MORAES, Vinicius de. Livro de sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 17.