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1 de abril de 2015

Lista de preferências de Orge


Alegrias, as desmedidas.
Dores, as não curtidas.

Casos, os inconcebíveis.
Conselhos, os inexequíveis.

Meninas, as veras.
Mulheres, insinceras.

Orgasmos, os múltiplos.
Ódios, os mútuos.

Domicílios, os temporários.
Adeuses, os bem sumários.

Artes, as não rentáveis.
Professores, os enterráveis.

Prazeres, os transparentes.
Projetos, os contingentes.

Inimigos, os delicados.
Amigos, os estouvados.

Cores, o rubro.
Meses, outubro.

Elementos, os fogos
Divindades, o Logos.

Vidas, as espontâneas.
Mortes, as instantâneas.

______
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 47.

O cordão partido


O cordão partido pode ser novamente atado
Ele segura novamente, mas
Está roto.

Talvez nos encontremos de novo, mas
Ali onde você me deixou
Não me achará novamente.

______
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 142.

Quando no quarto branco do hospital


Quando no quarto branco do hospital
Acordei certa manhã
E ouvi o melro, compreendi
Bem. Há algum tempo
Já não tinha medo da morte. Pois nada
Me poderá faltar
Se eu mesmo faltar. Então
Consegui me alegrar com
Todos os cantos dos melros depois de mim.

______
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 342.

31 de março de 2015

Se fôssemos infinitos


Fôssemos infinitos
Tudo mudaria
Como somos finitos
Muito permanece.

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BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 343.

A troca da roda


Estou sentado à beira do caminho.
O condutor troca a roda.
Não gosto de estar lá de onde venho.
Não gosto de estar lá para onde vou.
Por que olho a troca da roda
Com impaciência?

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BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 324.

Canção de uma enamorada


Quando me fazes alegre
Penso por vezes:
Agora poderia morrer
Então seria feliz
Até o fim.

E quando envelheceres
E pensares em mim
Estarei como hoje
E terás um amor
Sempre jovem.

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BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 319.

16 de março de 2015

Parada do velho novo

Eu estava sobre uma colina e vi o Velho se aproximando, mas ele vinha como se fosse o Novo.

Ele se arrastava em novas muletas, que ninguém antes havia visto, e exalava novos odores de putrefação, que ninguém antes havia cheirado.

A pedra passou rolando como a mais nova invenção, e os gritos dos gorilas batendo no peito deveriam ser as novas composições.

Em toda parte viam-se túmulos abertos vazios, enquanto o Novo movia-se em direção à capital.

E em torno estavam aqueles que instilavam horror e gritavam: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! E quem escutava ouvia apenas os seus gritos, mas quem olhava, via pessoas que não gritavam.

Assim marchou o Velho, travestido de Novo, mas em cortejo triunfal levava consigo o Novo e o exibia como Velho.

O Novo ia preso em ferros e coberto de trapos; estes permitiam ver o vigor de seus membros.

E o cortejo movia-se na noite, mas o que viram como a luz da aurora era a luz de fogos no céu. E o grito: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! seria ainda audível, não tivesse o trovão das armas sobrepujado tudo.
______
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 217.

13 de março de 2015

Numa gravura de leão chinesa


Os maus temem tuas garras.
Os bons se alegram de tua graça.
Algo assim
Gostaria de ouvir
Do meu verso.

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BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. [trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 320.

Aos que hesitam


Você diz:
Nossa causa vai mal.
A escuridão aumenta. As forças diminuem.
Agora, depois que trabalhamos por tanto tempo
Estamos em situação pior que no início.

Mas o inimigo está aí, mais forte do que nunca.
Sua força parece ter crescido. Ficou com aparência de invencível.
Mas nós cometemos erros, não há como negar.
Nosso número se reduz. Nossas palavras de ordem
Estão em desordem. O inimigo
Distorceu muitas de nossas palavras
Até ficarem irreconhecíveis.

Daquilo que dissemos, o que é agora falso:
Tudo ou alguma coisa?
Com quem contamos ainda? Somos o que restou, lançados fora
Da corrente viva? Ficaremos para trás
Por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo?

Precisamos ter sorte?

Isto você pergunta. Não espere
Nenhuma resposta senão a sua.

______
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. [trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 186.

19 de fevereiro de 2014

Quem se defende

Quem se defende porque lhe tiram o ar
Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando vocês se defendem porque lhe tiram o pão.
E no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre
Não lhe é permitido se defender.

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BRECHT, Bertolt. Quem se defende. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p 73.

Da amabilidade do mundo

1

Numa noite fria, nessa terra crua
Cada qual nasceu, uma criança nua.
E ali ficou, criatura sem dono
Quando uma mulher o envolveu num pano.

2

Ninguém o chamou, não era necessário.
Para trazê-lo não houve emissário.
Era um desconhecido, ser sem proteção
Quando um homem o tomou pela mão.

3

Numa noite fria, nessa terra crua
Cada qual leva a morte que é sua.
Cada homem certamente amou a vida
Coberto por palmos de terra batida.


______
BRECHT, Bertolt. Da amabilidade do mundo. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 45.

14 de fevereiro de 2014

Da complacência da natureza


Ah, a jarra de leite espumante inda busca
A boca babosa e sem dentes do velho senhor.
Ah, na perna do assassino que foge
Esfrega-se o cão à procura de amor.

Ah, o homem que fora da aldeia abusa da criança
Ainda recebe dos olmos a sombra gentil.
E suas pegadas sangrentas, bandidos, graças
À poeira cega e risonha ninguém viu.

E também o vento, aos gritos náufragos no mar
Mistura o sussurro da folhagem na orla
E levanta cortês o avental pobre da moça
Para que o forasteiro com sífilis a aprecie melhor.

E à noite o gemido fundo e lascivo da mulher
Cobre o choro da criança no canto do quarto.
E na mão que bateu no menino cai carinhosa
A maçã da árvore mais exuberante de um ano farto.

Ah, como brilha o olho claro da criança
Vendo o pai deitar à terra o boi e sacar o punhal!
E como arfam as mulheres o peito onde mamaram seus filhos
Vendo as tropas cruzarem a vila ao som da banda marcial.

Ah, nossas mães têm seu preço, nossos filhos se aviltam
Pois os marujos do barco que afunda anseiam qualquer pedaço de chão
E o moribundo só implora do mundo poder ainda lutar e
Alcançar o canto do galo e enxergar da aurora o primeiro clarão.

______
BRECHT, Bertolt. Da complacência da natureza. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 44.

12 de fevereiro de 2014

Hino a Deus


1

No fundo dos vales escuros morrem os famintos.
Mas você lhes mostra o pão e os deixa morrer.
Mas você reina eterno e invisível
Radiante e cruel, sobre o plano infinito.

2

Deixou os jovens morrerem, e os que fruíam a vida
Mas os que desejavam morrer, não permitiu...
Muitos daqueles que agora apodrecem
Acreditavam em você, e morreram confiantes.

3

Deixou os pobres pobres, ano após ano
Porque o desejo deles era mais belo que o seu céu
Infelizmente morreram antes que chegasse com a luz
Morreram bem-aventurados, no entanto - e apodreceram
                      imediatamente.

4

Muitos dizem que você não existe e que é melhor assim.
Mas como pode não existir o que pode assim enganar?
Se tantos vivem de você, e de outro modo não poderiam morrer -
Diga-me, que importância pode ter então que você não exista?

______
BRECHT, Bertolt. Hino a Deus. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 13.