18 de junho de 2010

Como se fosse


      De nada adiantou a couraça contra o fio da espada. O sangue jorrou entre as frestas metálicas e o jovem rei morreu no campo de batalha. Tão jovem, que não deixava descendente adulto para ocupar o trono. Apenas, da sua linhagem, um filho menino.
      Antes mesmo que a tumba fosse fechada, já os seus fiéis capitães se reuniam. A escolha de um novo rei não pode esperar. E determinaram que o menino haveria de reinar, a coroa lhe cabia de direito. Que começassem os preparativos para colocá-la sobre sua cabeça.
      Aprontavam-se as festas da coroação, enquanto os capitães instruíam o menino quanto ao seu futuro. Mas porque o rei seu pai havia sido muito amado pelo povo e temido pelos inimigos, e porque o rosto do menino era tão docemente infantil, uma decisão sem precedentes foi tomada.
      No dia da grande festa, antes que a coroa fosse pousada sobre os cachos do novo rei, a rainha sua mãe avançou e, diante de toda a corte, prendeu sobre seu rosto uma máscara com a efígie do pai. Assim ele haveria de ser coroado, assim ele haveria de governar. E os sinos tocaram em todo o reino.
      Muitos anos se passaram, muitas batalhas. O menino rei não era mais um menino. Era um homem. Acima da máscara seus cabelos começavam a branquear. Seu reino também havia crescido. As fronteiras extensas exigiam constante defesa.
      E na batalha em que defendia a fronteira do Norte, acossado pelos inimigos, o rei foi abatido no fundo de uma ravina, sem que de nada lhe valesse a couraça.
      Antes que fechasse os olhos, acercaram-se dele seus capitães. Retiraram o elmo. O sangue escorria da cabeça. O rei ofegava, parecia murmurar algo. Com um punhal cortaram as tiras de couro que prendiam a máscara. Soltou-se pela primeira vez aquele rosto pintado ao qual todos se haviam acostumado como se fosse carne e pele. Mas o rosto que surgiu por baixo dele não era um rosto de homem. A boca de criança movia-se ainda sobre mudas palavras, os olhos do rei faziam-se baços num rosto de menino.


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COLASANTI, Marina. 23 histórias de um viajante. São Paulo: Global, 2008. p. 115-6.

16 de junho de 2010

Invictus


Out of the night that covers me,
   Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
   For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
   I have not winced not cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
   My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
   Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
   Finds, and shall find, me unafraid.

It matters not how strait the gate,
   How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
   I am the captain of my soul.


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HENLEY, William E. Invictus. In: SPEARE, M. E. The pocket book of verse. New York: Pocket Books, 1950. p. 278-9.

14 de junho de 2010

Máxima #18


      A mesma agudeza de espírito que faz escrever boas coisas, faz perceber que talvez elas não o sejam bastante para merecerem ser lidas.
      Um espírito medíocre julga escrever divinamente; um espírito sagaz pensa escrever razoavelmente.


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BRUYÈRE, La. Os caracteres. São Paulo: Cultrix, 1965. p. 35.

Máxima #10


      Há na arte um ponto de perfeição, como o há de excelência ou maturidade na natureza. Aquele que o sente e o ama tem o gosto perfeito; o que não o sente e que o aprecia aqui ou ali, tem o gosto defeituoso. Há, portanto, bom gosto e mau gosto, e é com fundamento que se discutem os gostos.


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BRUYÈRE, La. Os caracteres. São Paulo: Cultrix, 1965. p. 34.

11 de junho de 2010

De "O homem revoltado"


      Que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento. [...] De certa maneira, ele contrapõe à ordem que o oprime uma espécie de direito a não ser oprimido além daquilo que pode admitir.


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CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 25.

De "O homem revoltado"


      A contradição é a seguinte: o homem recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele. Na verdade, os homens agarram-se ao mundo e, em sua imensa maioria, não querem deixá-lo. Longe de desejar realmente esquecê-lo, eles sofrem, ao contrário, por não possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo, exilados em sua própria pátria. A não ser nos instantes fulgurantes da plenitude, toda realidade é para eles incompleta.


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CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 299.

5 de junho de 2010


às vezes nos reveses
penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
digo: aguenta com altivez
segura o abacaxi com as duas mãos
doura tua tez
sob o sol dos trópicos e talvez
aprenderás a ser feliz
como as pombas da praça matriz
que voam alto
sagazes
e nos alvejam
com suas fezes
às vezes nos reveses


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FREITAS, Angélica. Rilke shake. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. p. 54.