26 de outubro de 2015

Setembro


Nunca mais será setembro,
nunca mais a  tua voz dizendo
nunca mais, eu lembro,

nunca mais, eu não esqueço,
a pele, nunca mais,
o teu olhar quebrado,

dividido, vou esquecê-lo,
é o que te digo, nunca mais
a minha mão no teu sorriso,

a tua voz cantando,
vou apagá-la para sempre,
e os nossos dias, setembro, lembro

bem, dentro a tua voz dizendo não
(ouço ainda agora), como se quebrasse
um copo, mil copos, contra o muro.

Rasgarei o que não houve, o que seria,
mesmo que tudo em mim me diga não
(e diz), mas é preciso.

Como não se pensa mais um pensamento,
quero, prometo:
nunca mais será setembro.

______
FERRAZ, Eucanaã. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 155.

Pedido

Houvesse deus e os deuses
a fim de que lhes pedisse:

o coração em que penso, por
mais frases e bocas que beije,

todas ache feias e frias, e que,
amanhã, ao despertar, ou à saída

da boate, pense em mim quando
a luz do dia sobre ele se desate.

______
FERRAZ, Eucanaã. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 37.

Metamorfose

Súbito pássaro
dentro dos muros,
caído,

pálido barco
na onda serena
chegado.

Noite sem braços!
Cálido sangue
corrido.

E imensamente
o navegante
mudado.

Seus olhos densos
apenas sabem
ter sido.

Seu lábio leva
um outro nome
mandado.

Súbito pássaro
por altas nuvens
bebido.

Pálido barco
nas flores quietas
quebrado.

Nunca, jamais
e para sempre
perdido

o eco do corpo
no próprio vento
pregado.

______
MEIRELES, Cecília. Metamorfose. In: ______. Poesia completa: volume I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 321-2.

O doido


Diziam, verdade ou não, que fora rico e são
e que a despeito dos bens que possuíra

acabara endividado, falido e torto. Talvez
por isso, embora miserável, a cabeça

reta, o andar
de quem governa e pisa terra extensa e sua

em perambular sob o sol absoluto,
absorvido sabe-se lá por que delírios.

Absorvido sabe-se lá por que delírios,
insultava o vento e o vazio numa agitação

de cabelos e palavras e era comum
vê-lo penteando com seus dedos

encardidos a água das praias,
como se província sua,

como sua líquida mulher ou filha.
Viveu assim, entre feridas e piolhos,

Até que desceu a noite
e uma pedra veio buscá-lo.


______
FERRAZ, Eucanaã. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 127.