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16 de outubro de 2017

Miudezas

Percorro todas as tardes um quarteirão de paredes
nuas.
Nuas e sujas de idade e ventos.
Vejo muitos rascunhos de pernas de grilos pregados
nas pedras.
As pedras, entretanto, são mais favoráveis a pernas
de moscas do que de grilos.
Pequenos caracóis deixaram suas casas pregadas
nestas pedras
E as suas lesmas saíram por aí à procura de outras
paredes.
Asas misgalhadinhas de borboletas tingem de azul
estas pedras.
Uma espécie de gosto por tais miudezas me paralisa.
Caminho todas as tardes por estes quarteirões
desertos, é certo.
Mas nunca tenho certeza
Se estou percorrendo o quarteirão deserto
Ou algum deserto em mim.

______
BARROS, Manuel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 39.

8 de outubro de 2017

Envoi

Be silent, old frog.
Let God compound the issue as he must,
And dog eat dog
Unto the final desecration of man’s dust.
The just will be devoured by the unjust.

______
DURRELL, Lawrence. Poemas. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p. 198.

Stoic

I, a slave, chained to an oar of poem,
Inhabiting this faraway province where
Nothing happens. I wouldn’t want it to.
I have expressly deprived myself of much:
Conversation, sweets of friendship, love...
The public women of the town don’t appeal.
I wouldn’t want them to. There are no others,
At least for an old, smelly, covetous bookman.
So many things might have fed this avocation,
But what’s the point? It’s too late.

About the matter of death I am convinced,
Also that peace is unattainable and destiny
Impermeable to reason. I am lucky to have
No grave illness, I suppose, no wounds
To ache all winter. I do not drink or smoke.
From all these factors I select one, the silence
Which is that jewel of divine futility,
Refusal to bow, the unvarnished grain
Of the mind’s impudence: you see it so well
On the faces of self-reliant dead.

______
DURRELL, Lawrence. Poemas. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p. 196.

14 de julho de 2016

[diante de nós a noite]


diante de nós a noite
mas o sol ainda vai se pôr
no espelho retrovisor

______
RUIZ, Alice. Outro silêncio: haikais. São Paulo: Boa Companhia, 2015. p. 90.

[folha seca]


folha seca
voa de volta ao galho
pé de vento

______
RUIZ, Alice. Outro silêncio: haikais. São Paulo: Boa Companhia, 2015. p. 74.

[escada de barro]


escada de barro
carrega lembranças
do braço amigo

______
RUIZ, Alice. Outro silêncio: haikais. São Paulo: Boa Companhia, 2015. p. 42.

8 de julho de 2016

Entre galos e cigarros, o amor


O amor em sua ilusão
é como o fumo que se queima,
e sabe em seu fogo toda a existência.
Mas, enquanto se esvai,
atribui à boca que o traga
toda permanência.

O amor em sua metafísica
canta como os galos
que sabem alvorecer a manhã,
mas tornam ao sono
na esperança de que o próprio canto
os desperte.


______
MORGADO, Flávio. Entre galos e cigarros, o amor. IN: PORTOCARRERO, Celina (org). Amar, verbo atemporal: 100 poemas de amor. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 87.

29 de junho de 2016

Canção dos dias grandes


A tarde não termina
porque o dia se esquece
de correr a cortina
pra que ele próprio cesse

É dia é dia ainda
vamos brincar correr
depois será bem-vinda
a noite que vier

E um frio tão fino
tão pouco já, tão leve
joga com o menino
no crepúsculo breve

______
CRUZ, Gastão. Canção dos dias grandes. In: FERRAZ, Eucanaã (org). A lua no cinema e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 19.

[quando eu tiver setenta anos]


quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre-docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.

______
LEMINSKI, Paulo. Caprichos e relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 35.

13 de junho de 2016

Cantiga para não morrer


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

______
GULLAR, Ferreira. Cantiga para não morrer. In: FERRAZ, Eucanaã. A lua no cinema e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 64.

Dia de hoje

Ó dia de hoje, ó dia de horas claras
florindo nas ondas, cantando nas florestas,
no teu ar brilham transparentes festas
e o fantasma das maravilhas raras
visita, uma por uma, as tuas horas
em que há por vezes súbitas demoras
plenas como as pausas dum verso.

Ó dia de hoje, ó dia de horas leves
bailando na doçura
e na amargura
de serem perfeitas e de serem breves.

______
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Dia de hoje. In: FERRAZ, Eucanaã (org). A lua no cinema e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 45.

27 de maio de 2016

Canção do dia de sempre


Tão bom viver dia a dia...
A vida, assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
como essas nuvens do céu...

E só ganhar, toda a vida,
inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
das outras vezes perdidas,
atiro a rosa do sonho
nas tuas mãos distraídas...

______
QUINTANA, Mário. Canção do dia de sempre. In: FERRAZ, Eucanaã. A lua no cinema e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 124.

4 de março de 2016

Estado de contra-sítio

Assim, pois, estamos sitiados
E por quem
Por ti e por mim, pela coisa
Estamos sempre sitiados
Por fronteiras, alfândegas, controles de passaporte, Interpol, polícia militar, tanques, lábia, burrice,
Por medalhas, uniformes, discursos oficiais,
Promessas, imposturas, artimanhas,
Falsa indignação dos dirigentes, hipocrisia,
Televisão, rádio, sabões, detergentes,
Publicidade, turismo, excursões, cruzeiros,
Fogões, geladeiras, acampamentos, escoteiros,
Artigos sobre educação, por multidão, poeira, coletânea de poemas,
Falta d’água, adubo, nervos, perturbações digestivas, calvície,
Armadores, futebol, ônibus, pontualidades, lesões
Da coluna vertebral, burocracia, prazos, atestados,
Críticas, Igreja, torturas, oportunistas,
Suspeita, perseguições, medo, impudência, concursos
De beleza, falta de dinheiro, falta de liberdades, estamos sitiados pelos boçais,
Bocas-moles, por nossas ideias negras, por nós mesmos,
E por qualquer coisa que venha à cabeça, estamos sempre sitiados.

______
VALAORITIS, Nanos. Estado de contra-sítio. In: LACARRIÈRE, Jacques. Grécia: um olhar amoroso. [trad. Irene Ernest Dias & Véra dos Reis]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 544.

10 de dezembro de 2015


If it hangs from the wall, it's a painting. If it rests on the floor, it's a sculpture. If it's very big or very small, it's conceptual. If it forms part of the wall, if it forms part of the floor, it's architecture. If you have to buy a ticket, it's modern. If you are already inside it and you have to pay to get out of it, it's more modern. If you can be inside it without paying, it's a trap. If it moves, it's outmoded. If you have to look up, it's religious. If you have to look down, it's realistic. If it's been sold, it's site-specific. If, in order to see it, you have to pass through a metal detector, it's public.

___
LERNER, Ben. Angle of yaw. Port Townsend: Copper Canyon Press, 2006. p. 45.

26 de outubro de 2015

Pedido

Houvesse deus e os deuses
a fim de que lhes pedisse:

o coração em que penso, por
mais frases e bocas que beije,

todas ache feias e frias, e que,
amanhã, ao despertar, ou à saída

da boate, pense em mim quando
a luz do dia sobre ele se desate.

______
FERRAZ, Eucanaã. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 37.

O doido


Diziam, verdade ou não, que fora rico e são
e que a despeito dos bens que possuíra

acabara endividado, falido e torto. Talvez
por isso, embora miserável, a cabeça

reta, o andar
de quem governa e pisa terra extensa e sua

em perambular sob o sol absoluto,
absorvido sabe-se lá por que delírios.

Absorvido sabe-se lá por que delírios,
insultava o vento e o vazio numa agitação

de cabelos e palavras e era comum
vê-lo penteando com seus dedos

encardidos a água das praias,
como se província sua,

como sua líquida mulher ou filha.
Viveu assim, entre feridas e piolhos,

Até que desceu a noite
e uma pedra veio buscá-lo.


______
FERRAZ, Eucanaã. Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 127.

16 de agosto de 2015

Ultima multis


de repente um gosto veio
fugacidade e saliva
um certo ranço, receio
dessa hora decisiva

lembro-me do rosto, meio
encoberto, inconcebida
sensação — o quarto cheio
em torneio com a vida

depois, o choro — e calcadas
na parede, as sombras — luto
de formas mal debuxadas

suspiros, rosas em cruz
sobre o peito resoluto
círios, odores e luz

______
FERREIRA, Antonio Geraldo Figueiredo. Peixe e míngua. São Paulo: Nankin Editorial, 2003. p. 93.

1 de abril de 2015

Lista de preferências de Orge


Alegrias, as desmedidas.
Dores, as não curtidas.

Casos, os inconcebíveis.
Conselhos, os inexequíveis.

Meninas, as veras.
Mulheres, insinceras.

Orgasmos, os múltiplos.
Ódios, os mútuos.

Domicílios, os temporários.
Adeuses, os bem sumários.

Artes, as não rentáveis.
Professores, os enterráveis.

Prazeres, os transparentes.
Projetos, os contingentes.

Inimigos, os delicados.
Amigos, os estouvados.

Cores, o rubro.
Meses, outubro.

Elementos, os fogos
Divindades, o Logos.

Vidas, as espontâneas.
Mortes, as instantâneas.

______
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 47.

O cordão partido


O cordão partido pode ser novamente atado
Ele segura novamente, mas
Está roto.

Talvez nos encontremos de novo, mas
Ali onde você me deixou
Não me achará novamente.

______
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 142.

Quando no quarto branco do hospital


Quando no quarto branco do hospital
Acordei certa manhã
E ouvi o melro, compreendi
Bem. Há algum tempo
Já não tinha medo da morte. Pois nada
Me poderá faltar
Se eu mesmo faltar. Então
Consegui me alegrar com
Todos os cantos dos melros depois de mim.

______
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2006. p. 342.