4 de dezembro de 2014

Crédulo


      Aquele que crê facilmente. Não quer dizer que seja mais dotado do que outros para a crença; quer dizer que o é menos para a dúvida.


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COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. [trad. Eduardo Brandão]. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 132.

1 de novembro de 2014

CONFÚCIO. Os analectos. São Paulo: Edusp, 2012. p. 2.


      O mestre disse: "Aprender algo e depois poder praticá-lo com regularidade, isso não é um contentamento? Se amigos vêm de lugares distantes, isso também não é uma alegria? Se as pessoas não reconhecem meu valor, e eu, apesar disso, não sinto rancor, isso também não é uma característica do Homem Nobre?"

Cartaz Para Uma Feira do Livro


      Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem.

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QUINTANA, Mario. Caderno H. São Paulo: Globo, 2006. p. 67.

22 de agosto de 2014

KHARMS, Daniil. The old woman. In: ______. Today I wrote nothing: the selected writings of Daniil Kharms. [trad. Matvei Yankelevich]. New York: Ardis Plublishers, 2009. p. 90.


(...)
      Now I'm sleepy, but I will not sleep. I will take paper and pen and I will write. I sense an awful strength within me. I thought everything over yesterday already. It will be a story about a miracle worker who lives in our time and does not work miracles. He knows he is a miracle worker and could create any sort of miracle, but he does not do it. He is evicted from his apartment - he knows that were he to just wave a finger the apartment would stay his, but he does not do it; he timidly vacates his apartment and lives outside of town in a shed. He can turn this old shed into a wonderful brick house, but he does not do it; he continues to live in the shed and in the end he dies, not having worked a single miracle in all his life.
(...)

15 de maio de 2014

Garrafa

Vá dizer aos camaradas
Que fui para o alto-mar
E que minha barca naufraga.

Leme partido.
Casco arrombado.
Sem farol afunda
Nas pedras dos arrecifes.

Bandeira aos farrapos. Nenhuma estrela guia
Célere desce lá do céu para minha companhia.
Destroços: proa, velame, quilha,
prancha, rede de pescar, arpão,
bússola, astrolábo, boia, sonar...

Que fui para o alto-mar
E que Medina e Meca já não significam
                                 mais nada para mim.

Entrevado
Vista turva
Porto nenhum avisto
Nas trevas da cerração.

Pelejo entre os vagalhões e as rocas
Não apuro os nós de lonjuras das seguras docas
Tampouco os altos e baixos relevos das pedras
                                                         que roncam ais
                                            no quebra-mar do cais
Ou os tapetes de mijo e restos de peixes
E patas de caranguejo e frutas podres
Tecidos pelas alpercatas e os pés nus sobre a rampa
                                                        do Mercado-Modelo.

Um marinheiro conserta sua embarcação
                                   — corpo de intempestiva casa —
Em pleno alto-mar aberto.
                                             Vá dizer aos meus amigos.

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SALOMÃO, Waly. Garrafa. In: ______. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 362-3.

22 de abril de 2014

Noite


      Estou olhando as mulheres passarem na rua em frente deste reles botequim.
      O cara me diz, meu irmão, pode descolar uma grana para um sujeito faminto?
      Foda-se, respondo.
      Eu podia estar assaltando, mas estou pedindo - ele não sabia se ameaçava ou suplicava.
      Foda-se, repito.
      Não consigo ver bem seu olhos ansiosos de cão vadio; é uma dessas noites escuras, propícia para os pés-rapados foderem as rameiras no cantão e terem um alívio agônico enquanto o dia afinal não chega com ânsias mais horrendas.


______
FONSECA, Rubem. Noite. In: ______. Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 13.

9 de abril de 2014

A filosofia do penetral


      (...)
      - Clemente, esse nome de "penetral" é uma beleza! É bonito, difícil, esquisito, e, só por ele, a gente vê logo como sua Filosofia é profunda e importante! O que é que quer dizer "penetral", hein?
      (...)
      - Olhe, Quaderna, o "penetral" é de lascar! Ou você tem a "intuição do penetral" ou não tem intuição de nada! Basta que eu lhe diga que "o penetral" é "a união do faraute com o insólito regalo", motivo pelo qual abarca o faraute, a quadra do deferido, o trebelho da justa, o rodopelo, o torvo torvelim e a subjunção da relápsia!

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SUASSUNA, Ariano. Pedra do Reino. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p. 193.

4 de abril de 2014

Pneumotórax


Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.

..........................................................................

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

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BANDEIRA, Manuel. Pneumotórax. In: ______. Estrela da vida inteia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 128.

24 de março de 2014

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. [trad. Ari Roitman & Paulina Watch]. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 92.


      O ator reina no perecível. Todos sabem que, de todas as glórias, a dele é a mais efêmera. Pelo menos é o que se diz. Mas todas as glórias são efêmeras. Do ponto de vista de Sirius, dentro de dez mil anos as obras de Goethe terão se transformado em pó e seu nome estará esquecido. Talvez alguns arqueólogos busquem "testemunhos" da nossa época. Tal ideia sempre foi instrutiva. Bem meditada, reduz nossas agitações à nobreza profunda que encontramos na indiferença. Atrai, sobretudo, nossas preocupações para o mais certo, quer dizer, para o imediato. De todas as glórias, a menos enganosa é a que se vive.

21 de março de 2014

Gosto


      É a faculdade de julgar o belo e o feio, o bom e o ruim, como um prazer que seria critério de verdade. O gosto concerne ao corpo, pela sensação, a ao espírito, pela cultura. Ele se educa; não se cria.
      Ele aspira ao universal (tenho a sensação de que todo mundo deveria achar belo, de direito, o que julgo ser tal), mas permanece subjetivo (não tenho nenhum meio de obter, de fato, a concordância de todos). É o que condena quase inevitavelmente ao conflito ou à polêmica. Não se trata de gostar de tudo, de admirar tudo, menos ainda de fingi-lo. "O verdadeiro gosto", dizia Auguste Comte, "sempre supõe um vivo desgosto". E Kant, mais profundamente: "Uma obrigação de gozar é um absurdo evidente". Não se comanda o gosto, já que é ele que comanda.
      Assim, o prazer sempre tem razão, mas não prova nada. Pode-se discutir o gosto (aspirar ao assentimento necessário de outrem), observa Kant, mas não disputar a seu respeito (decidir com base em provas). É o que quase sempre se esquece, e que nos condena, num outro sentido, às disputas..."

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COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. [trad. Eduardo Brandão]. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 267-8.

17 de março de 2014

Belo belo


Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cuzco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.

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BANDEIRA, Manuel. Belo belo. In: ______. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 199.

7 de março de 2014

Mau cheiro


Os jornais anunciam que o prefeito
vai acabar com o mau cheiro em Olaria.

É melhor do que nada: esta cidade
anda fedendo muito ultimamente.

Não falo da Lagoa que, parece,
já fede por capricho;
nem da praia do Leblon,
do Posto Seis:
                          nossa taxa de lixo.

Falo de um odor que entranha em tudo e que se espalha
pela cidade inteira feito gás  
                                                  e por mais
                                                  banho que tomemos
                                                  e por mais
                                                  desodorantes
                                                  que usemos  
                                                                        (na boca, na axila
                                                                        na vagina;
                                                                        no vaso do banheiro,
                                                                        no setor financeiro)
                                                  não se acaba esse cheiro

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GULLAR, Ferreira. Mau cheiro. In: ______. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 305.

6 de março de 2014

Digo sim


Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos de meu país
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
           e que meu coração
é um sol de esperança entre pulmões
           e nuvens

Poderia dizer que meu povo
É uma festa só na voz
de Clara Nunes
                          no rodar
das cabrochas no carnaval
da Avenida.
                    Mas não. O poeta mente.

A vida nós a amassamos em sangue
          e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
          em meio à fome
          e dizendo sim
­­­– em meio à violência e a solidão dizendo
          sim –
pelo espanto da beleza
pela flama de Tereza
          pelo meu filho perdido
neste vasto continente
          por Vianinha ferido
          pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
          pelo que virá enfim,
          não digo que a vida é bela
          tampouco me nego a ela:
– digo sim

______
GULLAR, Ferreira. Digo sim. In: ______. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

19 de fevereiro de 2014

Quem se defende

Quem se defende porque lhe tiram o ar
Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando vocês se defendem porque lhe tiram o pão.
E no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre
Não lhe é permitido se defender.

______
BRECHT, Bertolt. Quem se defende. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p 73.

Da amabilidade do mundo

1

Numa noite fria, nessa terra crua
Cada qual nasceu, uma criança nua.
E ali ficou, criatura sem dono
Quando uma mulher o envolveu num pano.

2

Ninguém o chamou, não era necessário.
Para trazê-lo não houve emissário.
Era um desconhecido, ser sem proteção
Quando um homem o tomou pela mão.

3

Numa noite fria, nessa terra crua
Cada qual leva a morte que é sua.
Cada homem certamente amou a vida
Coberto por palmos de terra batida.


______
BRECHT, Bertolt. Da amabilidade do mundo. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 45.

14 de fevereiro de 2014

Da complacência da natureza


Ah, a jarra de leite espumante inda busca
A boca babosa e sem dentes do velho senhor.
Ah, na perna do assassino que foge
Esfrega-se o cão à procura de amor.

Ah, o homem que fora da aldeia abusa da criança
Ainda recebe dos olmos a sombra gentil.
E suas pegadas sangrentas, bandidos, graças
À poeira cega e risonha ninguém viu.

E também o vento, aos gritos náufragos no mar
Mistura o sussurro da folhagem na orla
E levanta cortês o avental pobre da moça
Para que o forasteiro com sífilis a aprecie melhor.

E à noite o gemido fundo e lascivo da mulher
Cobre o choro da criança no canto do quarto.
E na mão que bateu no menino cai carinhosa
A maçã da árvore mais exuberante de um ano farto.

Ah, como brilha o olho claro da criança
Vendo o pai deitar à terra o boi e sacar o punhal!
E como arfam as mulheres o peito onde mamaram seus filhos
Vendo as tropas cruzarem a vila ao som da banda marcial.

Ah, nossas mães têm seu preço, nossos filhos se aviltam
Pois os marujos do barco que afunda anseiam qualquer pedaço de chão
E o moribundo só implora do mundo poder ainda lutar e
Alcançar o canto do galo e enxergar da aurora o primeiro clarão.

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BRECHT, Bertolt. Da complacência da natureza. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 44.

12 de fevereiro de 2014

Hino a Deus


1

No fundo dos vales escuros morrem os famintos.
Mas você lhes mostra o pão e os deixa morrer.
Mas você reina eterno e invisível
Radiante e cruel, sobre o plano infinito.

2

Deixou os jovens morrerem, e os que fruíam a vida
Mas os que desejavam morrer, não permitiu...
Muitos daqueles que agora apodrecem
Acreditavam em você, e morreram confiantes.

3

Deixou os pobres pobres, ano após ano
Porque o desejo deles era mais belo que o seu céu
Infelizmente morreram antes que chegasse com a luz
Morreram bem-aventurados, no entanto - e apodreceram
                      imediatamente.

4

Muitos dizem que você não existe e que é melhor assim.
Mas como pode não existir o que pode assim enganar?
Se tantos vivem de você, e de outro modo não poderiam morrer -
Diga-me, que importância pode ter então que você não exista?

______
BRECHT, Bertolt. Hino a Deus. [trad. Paulo César de Souza]. In: ______. Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2006. p. 13.

17 de janeiro de 2014

Epígrafe do capítulo 16 (The fence)

      A great rabbi stands teaching in the marketplace. It happens that a husband finds proof that morning of his wife’s adultery, and a mob carries her to the marketplace to stone her to death. […]
      The rabbi walks forward and stands beside the woman. Out of respect for him the mob forbears, and waits with the stones heavy in their hands. “Is there anyone here,” he says to them, “who has not desired another man’s wife, another woman’s husband?”
      They murmur and say, “We all know the desire. But, Rabbi, none of us has acted on it.”
      The rabbi says, “Then kneel down and give thanks that God made you strong.” He takes the woman by the hand and leads her out of the market. Just before he lets her go, he whispers to her, “Tell the lord magistrate who saved his mistress. Then he’ll know I am his loyal servant.”
      So the woman lives, because the community is too corrupt to protect itself from disorder.
      Another  rabbi, another city. He goes to her and stops the mob, as in the other story, and says, “Which of you is without sin? Let him cast the first stone.”
      The people are abashed, and they forget their unity of purpose in the memory of their own individual sins. Someday, they think, I may be like this woman, and I’ll hope for forgiveness and another chance. I should treat her the way I wish to be treated.
      As they open their hands and let the stones fall to the ground, the rabbi picks up one of the fallen stones, lifts it high over the woman’s head, and throws it straight down with all his might. It crushes her skull and dashes her brain onto the cobblestones.
      “Nor am I without sin,” he says to the people. “But if we allow only perfect people to enforce the law, the law will soon be dead, and our city with it.”
      So the woman died because her community was too rigid to endure her deviance.
      The famous version of this story is noteworthy because it is so startlingly rare in our experience. Most communities lurch between decay and rigor mortis, and when they veer too far, they die. Only one rabbi dare to expect of us such a perfect balance that we could preserve the law and still forgive the deviation. So, of course, we killed him.

______
CARD, Orson Scott. Speaker for the dead. New York: Tor, 1994. p. 277-8.