30 de maio de 2010

O assassinato de Hipátia


      Hipátia foi a primeira mulher na história assassinada por ser uma pesquisadora da ciência. Era a filha mais bonita de Teão, bibliotecário em Alexandria. Seu pai escreveu tratados de geometria e música, era um erudito reconhecido, mas ela o superou em tudo e chegou a possuir o domínio total da astronomia e da matemática de seu tempo. Escreveu textos densos. Sabe-se, por exemplo, que foi autora de um Comentário sobre a Aritmética de Diofanto, um Comentário sobre as Crônicas de Apolônio, e uma edição do terceiro livro de um escrito em que seu pai divulgou o Almagesto de Ptolomeu. Lamentavelmente não restou absolutamente nada, porque seus escritos foram destruídos.
      Na primavera de 415 d.C., uma multidão de monges devotos, liderados por um tal de Pedro, seguidor do venerável Cirilo, bispo de Alexandria, sequestrou-a. Hipátia se defendeu e gritou, mas ninguém ousou ajudá-la. O terror se impôs e, dessa forma, os monges puderam levá-la até a igreja de Cesário. Ali, à vista de todos, golpearam-na brutalmente com telhas. Arrancaram-lhe os olhos e a língua. Quando já estava morta, levaram o corpo para um lugar chamado Cinaro e o despedaçaram, arrancaram os órgãos e os ossos e finalmente queimaram os restos. A intenção final não era outra que a total aniquilação de tudo quanto Hipátia significava como mulher.
      Cirilo era sobrinho de Teófilo, o causador da destruição do Serapeum. Tinha um destino determinado e o cumpriu. De 412 d.C. a 444 d.C., regeu o rumo espiritual dos alexandrinos. Não suportou a sabedoria de Hipátia, capaz de pôr em dúvida as doutrinas cristãs ao exercer, com modéstia, o método científico. Damáscio contou o seguinte: "Cirilo se corroía a tal ponto que tramou o assassinato dessa mulher de maneira que acontecesse o mais cedo possível [...]." (Vida de Isidoro, 79, 24-25.)
      O prefeito da cidade, envergonhado, determinou uma investigação sobre a morte de Hipátia e designou, como coordenador, Edésio, que não tardou a receber dinheiro de Cirilo para esquecer tudo. O crime de Hipátia ficou, assim, impune, por esse suborno constrangedor.


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BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros. [trad. Léo Schlafman]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p. 108-9.

20 de maio de 2010

      A religião, por ter no terror a sua origem, dignificou certos tipos de medo e fez com que as pessoas não os julgassem vergonhosos. Nisso prestou um grande desserviço à humanidade, uma vez que todo medo é ruim. Acredito que quando morrer apodrecerei e nada de meu ego sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenharia estremecer de pavor diante do pensamento da aniquilação. A felicidade não deixa de ser verdadeira porque deve necessariamente chegar a um fim; tampouco o pensamento e o amor perdem seu valor por não serem eternos. Muitos homens preservaram o orgulho ante o cadafalso; decerto o mesmo orgulho deveria nos ensinar a pensar verdadeiramente sobre o lugar do homem no mundo. Ainda que as janelas abertas da ciência a princípio nos façam tiritar, depois do tépido e confortável ambiente familiar de nossos mitos antropomórficos tradicionais, ao fim o ar puro nos confere vitalidade, e ademais os grandes espaços têm seu próprio esplendor.


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RUSSELL, Bertrand. No que acredito. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 38-9.

      Os que crêem que na morte herdarão a bem-aventurança eterna quiçá possam encará-la sem horror, ainda que, para a felicidade dos médicos, isso não aconteça com frequência.


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RUSSELL, Bertrand. No que acredito. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 38.

15 de maio de 2010

O dia do juízo


Quatro marm'anjos botarão a boca
No trombone, um em cada canto, e então,
Com toda a força dos pulmões dirão:
"É hora, pessoal. Fora da toca!"

Depois virá chegando a massaroca
de esqueletos, da terra, de roldão,
Catando os corpos pra reunião,
Pintos em torno da galinha choca.

E a galinha será Deus poderoso,
Separando a pureza da sujeira:
Uns vão pro caldeirão, outros pro gozo.

Por último virá uma fieira
De arcanjos: uma a um, belo e formoso,
Apagarão a luz e "bona sera".


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BELLI, Giuseppe Gioachino. O dia do juízo. In: CAMPOS, Augusto de. À margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 59.

14 de maio de 2010

Uma nuvem de corvos


Chegas ao fim da linha, o vento
Norte despeja sobre o rio
A poeira das casas em ruína.
Aí estás solitária e a praça te abandona
Na encruzilhada, e já não sabes
Mais viver, não sabes recordar.
Tão verde o sabugueiro aquela tarde,
Frescos os montes de terra
Além da cidade, pelo declive
Que de Santa Sabina
Desce à Bocca della Verità.

Ah! transviada (o ano hoje nos colhe
Tão distanciados por estradas diversas)
Caminhas, eu te chamo. Fere as janelas
Obliquamente a chuva.
Afastas o maço dos cabelos
Das orelhas, sacodes
As lembranças perdidas: uma nuvem
De corvos do meu céu
Pousa, quando anoitece, em teu espelho.

(trad: Augusto de Campos)


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SINISGALLI, Leonardo. Uma nuvem de corvos. In: CAMPOS, Augusto de. À margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 65.