22 de março de 2012

Agnosticismo

         Não sabemos se Deus existe; não podemos saber. É o que justifica a fé e o ateísmo, que são duas crenças. É o que justifica também o agnosticismo, que se recusa a crer no que ignora. Posição respeitável, claro, e que parece sensata. Por que teríamos de escolher sem saber? Todavia, pode ser que a aparência seja enganadora, aqui. Se soubéssemos, a questão da escolha já não se colocaria. E quem pode viver sem crença?
         Ágnostos, em grego, é o desconhecido ou o incognoscível. Ser agnóstico é levar o desconhecido a sério e se recusar a sair dele: é reconhecer ou afirmar o que não se sabe. Essa palavra, que seria passível de uma extensão mais ampla, só é utilizada em matéria de religião. É que Deus é o incognoscível absoluto, assim como a morte é o incognoscível último. O agnóstico não toma posição nem sobre esta nem sobre aquele. Deixa a questão em aberto. A morte fechará a porta ou acenderá a luz.
         A fraqueza da noção se prende à sua evidência: seu limite é não ter limite. Como ninguém sabe se Deus existe, todos nós deveríamos ser agnósticos. Mas essa confissão de ignorância deixaria então de ser uma posição particular, para se tornar uma característica geral da condição humana. O que restaria do agnosticismo? Equivale a dizer portanto que ele só existe por diferença: ser agnóstico é menos reconhecer não saber (muitos ateus e muitos crentes também reconhecem isso) do que querer ater-se a essa ignorância. Se essa posiçao é mais correta que as outras, é o que nenhum saber garante. É preciso crer nela, e é por isso que o agnosticismo também é uma espécie de fé, só que negativa: é crer que não se crê.


______
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 18.

Ateísmo

            É a doutrina que nega a existência de Deus como princípio de causalidade do mundo e de todas as coisas, mas é também - num sentido mais amplo - usado para identificar todos aqueles que não se interessam pela busca dessa causalidade ou que pensam muito diferente das religiões oficiais. Assim, a ideia do Deus sive Natura de Espinosa, por exemplo, foi acusada de ateísmo disfarçado, porque defendia uma lógica imanente (e não transcendente ou sobrenatural), preconizando a existência de um Deus que se confunde com a matéria do mundo, com o todo. Em Espinoza, tudo é Deus, tudo está em Deus. Deus é a única substância, sendo todas as coisas apenas "modos" dessa substância única, formas de expressão da substância Deus. Nesse caso, o panteísmo de Espinosa não nega a existência de Deus, seja como lógica do universo, seja como causalidade, mas o fato de colocar Deus como algo material (sendo a matéria considerada algo espúrio pela religião) faria dele um ateu, ainda que ele próprio não concordasse com isso. Até hoje se discute se o panteísmo é ateísmo ou não. Já no caso do Barão de Holbach, não há muito o que discutir, porque ele próprio se intitulava um ateu legítimo e convicto. Para Holbach, a ideia da existência de potências superiores e sobrenaturais nasceu, em tempos primitivos, do terror que a natureza inspirava nos homens, da incompreensão diante dos fenômenos naturais. Ele também não negava a existência de uma lógica da natureza (pelo contrário, ele é um fatalista assumido), o que ele nega é essa ideia antropomórfica da divindade criada para apaziguar (ou, antes, amedrontar) o espírito humano, pois o medo do castigo divino é uma forma de dominação social das mais eficazes. O romano Lucrécio, muito antes dele, já dizia que as crenças e as superstições nascem da ignorância das leis naturais, da incompreensão da natureza, e que essa é a forma de manter os homens fracos e covardes. Seja como for, seria possível propormos outra distinção: a de que todo pincípio de lógica ou de perenidade absoluta na natureza já é uma ideia de divindade (espiritual ou material) e, assim, os ateus seriam apenas aqueles que defendem um princípio de caos absoluto, anomia total, acaso perpétuo. É claro que um Deus material não faz sentido para os espiritualistas, que veem na matéria o princípio do mal e da degradação. Mas o problema está no preconceito que se tem com relação à matéria, que, vista sob outro ângulo, num nível mais primordial, é tão etérea quanto o espírito (ou a ideia que se tem dele). Independentemente de qualquer coisa, a verdade é que o ateísmo ficou marcado como sendo algo perigoso e pernicioso, como se os ateus fossem homens maus, demoníacos, mas, no fundo, como diz Holbach, o ateísmo ou qualquer tipo de reflexão que fuja à regra geral é raro, já que é sinônimo de uma liberdade de pensamento e de uma busca pessoal que só alguns são capazes de atingir. Holbach é um exemplo de virtude incontestável, tanto quanto Espinoza, Guyau ou Nietzsche, o que prova que a religiosidade não é, como dizia Holbach, garantia de nenhuma bondade, mas, sim, um espírito bem formado, uma razão que funcione de verdade.


______
SCHÖPKE, Regina. Dicionário filosófico: conceitos fundamentais. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 38-9.

Agnosticismo/Agnóstico

      Termo criado por Thomas Huxley (naturalista inglês), em 1869, para designar a predisposição de seu espírito (e que acabou sendo tomada como uma metáfora do espírito científico em geral) de considerar inútil qualquer discussão ou reflexão acerca da verdade que não tenha como base o método positivo científico, ou seja, que não possa ser testada, posta à prova empiricamente. No caso, isso diz respeito diretamente às questões de ordem metafísica e religiosa (como a existência de Deus, do absoluto, da alma, etc.). Não se trata, no entanto, de uma recusa absoluta desses problemas - nem mesmo de professar um ateísmo profundo -, mas de uma supressão do juízo a respeito desses temas (uma espécie de ceticismo metafisico, de quem nem afirma nem nega, preferindo a dúvida a qualquer tipo de certeza dogmática). Digamos que é uma ignorância confessada a respeito do tema; eis porque agnóstico se opõe a gnóstico (aquele que acredita ter um conhecimento especial da esfera religiosa). Para um agnóstico, portanto, a ciência não pode provar nem a existência nem a inexistência de Deus; logo, para ele, trata-se de um problema de fé e não de ciência.



______
SCHÖPKE, Regina. Dicionário filosófico: conceitos fundamentais. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 17.

15 de março de 2012

Móveis ao mar

         Vi num programa de televisão que, entre as inúmeras melhorias necessárias para as Olimpíadas do Rio, está a "limpeza da Baía de Guanabara". Dita a frase, a tevê mostrou um sofá encalhado num mangue: três lugares, revestimento acetinado, puxando pro lilás, com os assentos enlameados sendo disputados por dois urubus. Incrível.
         Não pretendo, de forma alguma, desmerecer o Rio. Quando vi o presidente do Comitê Olímpico Internacional tirando o cartão do envelope e dizendo Rrrio de Rrranerow, no início do mês, lágrimas cruzaram minhas bochechas, tão rápidas quanto, imagino, canoas e barcos a vela singrarão as águas da rediviva Cidade Maravilhosa, daqui a seis anos e meio. A amplitude de meu desespero vai muito além das pequenas rixas regionais: como pode um ser humano, oh céus!, jogar um sofá no mar?
         Todos nós já nos encontramos na rua, algum dia, com um papel de bala na mão, ou uma latinha de refrigerante, olhando em volta, em busca de uma lixeira. Muitos de nós, não encontrando nenhuma, já jogamos o papel no chão, colocamos a latinha num canto, ou ao lado de um saco de lixo - como se, por osmose, quem sabe, ela fosse parar lá dentro. Não se justifica, mas se compreende. Agora, até onde pude ver, nesses trinta e dois anos sobre a Terra, as pessoas não andam por aí com sofás velhos nos ombros. Sequer com poltronas. Nem mesmo uma almofada costuma-se levar à rua. Para se atirar um móvel ao mar, portanto, é preciso não apenas má-fé, mas esforço, engenho, planejamento e trabalho em equipe.
         Imagino o sujeito, lá pela quarta-feira, ligando pros amigos: "Ô Gouveia, tudo bom? É o Túlio. Seguinte, tô precisando de uma forcinha aí, no sábado, pra jogar um sofá da ponte..." "Maravilha, Valdeci! Então sábado à tarde cê traz a Kombi do teu cunhado e a gente resolve o problema." "Fica tranquilo, Murilão, depois a gente volta aqui e faz um churrasquinho!"
         Sábado à tarde, os amigos se reúnem. O Valdeci com a Kombi do cunhado, o Murilão e o Gouveia cheios de entusiasmo, o Túlio pondo as Brahmas pra gelar, enquanto sua mulher orienta os homens na sala: "Cuidado com o batente!", "Olha o abajur, o abajur, Gouveia!"
         Os amigos amarram o sofá na caçamba da Kombi - é uma dessas Kombis-caminhonete - e dirigem meia hora até a ponte mais próxima. Talvez no caminho façam um bolão: sofá boia ou afunda? O Murilão diz que o fogão da prima afundou, semana passada. O Valdeci comenta que a geladeira da tia boiou - já faz o quê, dois anos?
         Chegam à ponte. Param no acostamento. Tiram o sofá da caçamba, contam um, dois e lá vão os... Pronto, atiraram o sofá no mar. O sofá boia. Os três o contemplam, sendo levado pela correnteza, naquele silêncio que só as verdadeiras amizades permitem. Túlio brinca: "Saravá, Iemanjá!". Depois vão comer churrasco.


______
PRATA, Antonio. Meio intelectual, meio de esquerda. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 26-7.