16 de setembro de 2012

COLASANTI, Marina. Aqui entre nós. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. p. 48.

      E o que significa o espartilho? É uma couraça ao contrário, que não se destina a proteger quem vai à luta, mas a impedir que se vá. Tolhe os movimentos, impede a vida ativa. William Law, um educador inglês cujo livro teve 10 edições entre 1729 e 1772, relata a história de uma mãe que providenciava para que suas filhas tivessem os espartilhos apertados ao máxino, as refeições reduzidas ao mínimo, e tomassem constantes laxantes. Tudo isso, para garantir um ar pálido, delicado e enfermiço, muito indicado para as moças finas naquela época. Como resultado desse tratamento, a filha mais velha morreu aos vinte anos, e a autópsia revelou que "as costelas tinham entrado para dentro do fígado, e que outros órgãos estavam comprometidos por terem sido comprimidos juntos graças à ação do espartilho, tão apertado, que frequentemente arrancava lágrimas da moça enquanto a camareira a vestia."

7 de setembro de 2012

O fim da vida

Conhece da humana lida
a sorte:
o único fim da vida
é a morte
e não há, depois da morte,
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada:
ela é tudo e o resto, nada.


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CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 53.

O poeta cego

Eis o poeta cego.
Abandonou-o seu ego.
Abandonou-o seu ser.
Sem ser nem ver ele verseja.

Bem antes do amanhecer
Em seus versos talvez se veja
Diverso de tudo o que seja
Tudo que almeja ser.


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CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 13.

29 de agosto de 2012

ABREU, Caio Fernando. A vida gritando nos cantos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. p. 33.

      Meu amigo Cláudia é uma das pessoas mais dignas que conheço. E aqui preciso me deter um pouco para explicar o que significa, para mim, "digno" ou "dignidade". Nem é tão complicado: dignidade acontece quando se é inteiro. Mas que quer dizer ser "inteiro"? Talvez quando se faz exatamente o que se quer fazer, do jeito que se quer fazer e da melhor maneira possível. A opinião alheia, então, torna-se detalhe desimportante. O que pode resultar - e geralmente resulta mesmo - numa enorme solidão. Dignidade é quando a solidão de ter escolhido ser, tão exatamente quanto possível, aquilo que se é dói muito menos do que ter escolhido a falsa solidão de ser o que não se é, apenas para não sofrer a rejeição tristíssima dos outros.
(...)
O Estado de S. Paulo, 17/06/1986

16 de agosto de 2012

Diamante

O amor seria fogo ou ar
em movimento, chama ao vento;
e no entanto é tão duro amar
este amor que o seu elemento
deve ser terra: diamante,
já que dura e fura e tortura
e fica tanto mais brilhante
quanto mais se atrita, e fulgura,
ao que parece, para sempre:
e às vezes volta a ser carvão
a rutilar incandescente
onde é mais funda a escuridão;
e volta indecente esplendor
e loucura e tesão e dor.


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CICERO, Antonio. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 27.

18 de maio de 2012

Hora grave

Quem chora agora em algum lugar do mundo,
         sem razão chora no mundo,
         chora por mim.

Quem ri agora em algum lugar da noite,
         sem razão se ri na noite,
         ri-se de mim.

Quem anda agora em algum lugar do mundo,
         sem razão anda no mundo,
         vem pra mim.

Quem morre agora em algum lugar do mundo,
         sem razão morre no mundo,
         olha pra mim.


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RILKE, Rainer Maria. Poemas. [trad. José Paulo Paes]. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 83.

17 de maio de 2012

O sebo e o céu

         Num dia 30 ou 31 de dezembro, fui visitá-lo na Elizart, seu sebo na rua Marechal Floriano, no velho centro. Na saída, soltei uma frase: "Quando morrer, não quero ir para o céu. Quero ir para um sebo". Ele gostou e anotou. Manoel Mattos, ou Manel, à antiga, era assim. Vivia pelas palavras, ditas ou impressas.
         Se minha ideia era a de ir para um sebo depois de morto, Manel fez melhor: praticamente nasceu em um, fundado por seu pai, e passou a vida nele. O mundo era só uma extensão das estantes. Não se contentava em comprar livros raros e machucados, às vezes sem capa, dar-lhes um trato – como copiar à mão o sumário e aplicá-lo à guisa de capa – e em exibi-los em bancadas para o primeiro que passasse. Conforme o livro, tinha de procurar a pessoa que, a seu ver, fora feita para ele.
         Quando lhe disse que estava pesquisando sobre Maneco de Almeida, autor de "Memórias de um  Sargento de Milícias", cumulou-me de livros, revistas e recortes raros sobre seu xará, material que tirou de sua reserva particular. Não contente, subiu comigo ao morro da Conceição, um dos cenários do livro. Manel sabia tudo sobre cada esquina daquele e de outros berços do Rio.
         Pouco depois, caiu doente. O câncer castigou-o por mais de um ano. Mas, a cada má notícia, ele se superava e vencia mais uma etapa. Até que, no dia 12 de abril, ligou-me no fim da tarde. Esperava viver mais um dia – só mais um – mas sabia que não seria possível. "Não pensei que fosse acabar como peru, morrendo de véspera", ele riu. Citou minha frase pela última vez. Despediu-se tranquilo e partiu poucas horas depois.
         Visitá-lo na Elizart no último dia útil do ano já era uma tradição. Continuarei a fazer isso. O sebo estará lá, tocado por seus irmãos e seu filho. E sei que, de muitas maneiras, Manel também estará. Afinal, é o seu céu.


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CASTRO, Ruy. O sebo e o céu. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A2, 16 maio 2012.

30 de abril de 2012

As rosas que eu colho
não são essas, frementes
na iluminação da manhã;
são, se as colho, as dum jardim contrário,
nascido desses, vossos, de sua terrosa
raiz, mas crescido inverso
como a imagem nágua;
aonde não chegam os pássaros
com o seu roubo, no exasperado coração da terra,
floresce, tigre, isento de odor.


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GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 48.

25 de abril de 2012

Self-pity

I never saw a wild thing
sorry for itself.
A small bird will drop frozen dead from a bough
without ever having felt sorry for itself.


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LAWRENCE, D. H. The complete poems. Ware: Wordsworth, 2002. p. 382.

21 de abril de 2012

         "Nunca há no dever outra dificuldade a não ser a de cumprir com ele", dizia Alain.


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COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 161.

9 de abril de 2012

         (...) o eu nada mais é do que o conjunto das ilusões que tem acerca de si mesmo: o narcisismo não é o efeito do ego, mas seu princípio.


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COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 168.

22 de março de 2012

Agnosticismo

         Não sabemos se Deus existe; não podemos saber. É o que justifica a fé e o ateísmo, que são duas crenças. É o que justifica também o agnosticismo, que se recusa a crer no que ignora. Posição respeitável, claro, e que parece sensata. Por que teríamos de escolher sem saber? Todavia, pode ser que a aparência seja enganadora, aqui. Se soubéssemos, a questão da escolha já não se colocaria. E quem pode viver sem crença?
         Ágnostos, em grego, é o desconhecido ou o incognoscível. Ser agnóstico é levar o desconhecido a sério e se recusar a sair dele: é reconhecer ou afirmar o que não se sabe. Essa palavra, que seria passível de uma extensão mais ampla, só é utilizada em matéria de religião. É que Deus é o incognoscível absoluto, assim como a morte é o incognoscível último. O agnóstico não toma posição nem sobre esta nem sobre aquele. Deixa a questão em aberto. A morte fechará a porta ou acenderá a luz.
         A fraqueza da noção se prende à sua evidência: seu limite é não ter limite. Como ninguém sabe se Deus existe, todos nós deveríamos ser agnósticos. Mas essa confissão de ignorância deixaria então de ser uma posição particular, para se tornar uma característica geral da condição humana. O que restaria do agnosticismo? Equivale a dizer portanto que ele só existe por diferença: ser agnóstico é menos reconhecer não saber (muitos ateus e muitos crentes também reconhecem isso) do que querer ater-se a essa ignorância. Se essa posiçao é mais correta que as outras, é o que nenhum saber garante. É preciso crer nela, e é por isso que o agnosticismo também é uma espécie de fé, só que negativa: é crer que não se crê.


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COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 18.

Ateísmo

            É a doutrina que nega a existência de Deus como princípio de causalidade do mundo e de todas as coisas, mas é também - num sentido mais amplo - usado para identificar todos aqueles que não se interessam pela busca dessa causalidade ou que pensam muito diferente das religiões oficiais. Assim, a ideia do Deus sive Natura de Espinosa, por exemplo, foi acusada de ateísmo disfarçado, porque defendia uma lógica imanente (e não transcendente ou sobrenatural), preconizando a existência de um Deus que se confunde com a matéria do mundo, com o todo. Em Espinoza, tudo é Deus, tudo está em Deus. Deus é a única substância, sendo todas as coisas apenas "modos" dessa substância única, formas de expressão da substância Deus. Nesse caso, o panteísmo de Espinosa não nega a existência de Deus, seja como lógica do universo, seja como causalidade, mas o fato de colocar Deus como algo material (sendo a matéria considerada algo espúrio pela religião) faria dele um ateu, ainda que ele próprio não concordasse com isso. Até hoje se discute se o panteísmo é ateísmo ou não. Já no caso do Barão de Holbach, não há muito o que discutir, porque ele próprio se intitulava um ateu legítimo e convicto. Para Holbach, a ideia da existência de potências superiores e sobrenaturais nasceu, em tempos primitivos, do terror que a natureza inspirava nos homens, da incompreensão diante dos fenômenos naturais. Ele também não negava a existência de uma lógica da natureza (pelo contrário, ele é um fatalista assumido), o que ele nega é essa ideia antropomórfica da divindade criada para apaziguar (ou, antes, amedrontar) o espírito humano, pois o medo do castigo divino é uma forma de dominação social das mais eficazes. O romano Lucrécio, muito antes dele, já dizia que as crenças e as superstições nascem da ignorância das leis naturais, da incompreensão da natureza, e que essa é a forma de manter os homens fracos e covardes. Seja como for, seria possível propormos outra distinção: a de que todo pincípio de lógica ou de perenidade absoluta na natureza já é uma ideia de divindade (espiritual ou material) e, assim, os ateus seriam apenas aqueles que defendem um princípio de caos absoluto, anomia total, acaso perpétuo. É claro que um Deus material não faz sentido para os espiritualistas, que veem na matéria o princípio do mal e da degradação. Mas o problema está no preconceito que se tem com relação à matéria, que, vista sob outro ângulo, num nível mais primordial, é tão etérea quanto o espírito (ou a ideia que se tem dele). Independentemente de qualquer coisa, a verdade é que o ateísmo ficou marcado como sendo algo perigoso e pernicioso, como se os ateus fossem homens maus, demoníacos, mas, no fundo, como diz Holbach, o ateísmo ou qualquer tipo de reflexão que fuja à regra geral é raro, já que é sinônimo de uma liberdade de pensamento e de uma busca pessoal que só alguns são capazes de atingir. Holbach é um exemplo de virtude incontestável, tanto quanto Espinoza, Guyau ou Nietzsche, o que prova que a religiosidade não é, como dizia Holbach, garantia de nenhuma bondade, mas, sim, um espírito bem formado, uma razão que funcione de verdade.


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SCHÖPKE, Regina. Dicionário filosófico: conceitos fundamentais. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 38-9.

Agnosticismo/Agnóstico

      Termo criado por Thomas Huxley (naturalista inglês), em 1869, para designar a predisposição de seu espírito (e que acabou sendo tomada como uma metáfora do espírito científico em geral) de considerar inútil qualquer discussão ou reflexão acerca da verdade que não tenha como base o método positivo científico, ou seja, que não possa ser testada, posta à prova empiricamente. No caso, isso diz respeito diretamente às questões de ordem metafísica e religiosa (como a existência de Deus, do absoluto, da alma, etc.). Não se trata, no entanto, de uma recusa absoluta desses problemas - nem mesmo de professar um ateísmo profundo -, mas de uma supressão do juízo a respeito desses temas (uma espécie de ceticismo metafisico, de quem nem afirma nem nega, preferindo a dúvida a qualquer tipo de certeza dogmática). Digamos que é uma ignorância confessada a respeito do tema; eis porque agnóstico se opõe a gnóstico (aquele que acredita ter um conhecimento especial da esfera religiosa). Para um agnóstico, portanto, a ciência não pode provar nem a existência nem a inexistência de Deus; logo, para ele, trata-se de um problema de fé e não de ciência.



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SCHÖPKE, Regina. Dicionário filosófico: conceitos fundamentais. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 17.

15 de março de 2012

Móveis ao mar

         Vi num programa de televisão que, entre as inúmeras melhorias necessárias para as Olimpíadas do Rio, está a "limpeza da Baía de Guanabara". Dita a frase, a tevê mostrou um sofá encalhado num mangue: três lugares, revestimento acetinado, puxando pro lilás, com os assentos enlameados sendo disputados por dois urubus. Incrível.
         Não pretendo, de forma alguma, desmerecer o Rio. Quando vi o presidente do Comitê Olímpico Internacional tirando o cartão do envelope e dizendo Rrrio de Rrranerow, no início do mês, lágrimas cruzaram minhas bochechas, tão rápidas quanto, imagino, canoas e barcos a vela singrarão as águas da rediviva Cidade Maravilhosa, daqui a seis anos e meio. A amplitude de meu desespero vai muito além das pequenas rixas regionais: como pode um ser humano, oh céus!, jogar um sofá no mar?
         Todos nós já nos encontramos na rua, algum dia, com um papel de bala na mão, ou uma latinha de refrigerante, olhando em volta, em busca de uma lixeira. Muitos de nós, não encontrando nenhuma, já jogamos o papel no chão, colocamos a latinha num canto, ou ao lado de um saco de lixo - como se, por osmose, quem sabe, ela fosse parar lá dentro. Não se justifica, mas se compreende. Agora, até onde pude ver, nesses trinta e dois anos sobre a Terra, as pessoas não andam por aí com sofás velhos nos ombros. Sequer com poltronas. Nem mesmo uma almofada costuma-se levar à rua. Para se atirar um móvel ao mar, portanto, é preciso não apenas má-fé, mas esforço, engenho, planejamento e trabalho em equipe.
         Imagino o sujeito, lá pela quarta-feira, ligando pros amigos: "Ô Gouveia, tudo bom? É o Túlio. Seguinte, tô precisando de uma forcinha aí, no sábado, pra jogar um sofá da ponte..." "Maravilha, Valdeci! Então sábado à tarde cê traz a Kombi do teu cunhado e a gente resolve o problema." "Fica tranquilo, Murilão, depois a gente volta aqui e faz um churrasquinho!"
         Sábado à tarde, os amigos se reúnem. O Valdeci com a Kombi do cunhado, o Murilão e o Gouveia cheios de entusiasmo, o Túlio pondo as Brahmas pra gelar, enquanto sua mulher orienta os homens na sala: "Cuidado com o batente!", "Olha o abajur, o abajur, Gouveia!"
         Os amigos amarram o sofá na caçamba da Kombi - é uma dessas Kombis-caminhonete - e dirigem meia hora até a ponte mais próxima. Talvez no caminho façam um bolão: sofá boia ou afunda? O Murilão diz que o fogão da prima afundou, semana passada. O Valdeci comenta que a geladeira da tia boiou - já faz o quê, dois anos?
         Chegam à ponte. Param no acostamento. Tiram o sofá da caçamba, contam um, dois e lá vão os... Pronto, atiraram o sofá no mar. O sofá boia. Os três o contemplam, sendo levado pela correnteza, naquele silêncio que só as verdadeiras amizades permitem. Túlio brinca: "Saravá, Iemanjá!". Depois vão comer churrasco.


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PRATA, Antonio. Meio intelectual, meio de esquerda. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 26-7.