26 de novembro de 2017

MENCKEN, H. L. O livro dos insultos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 221.

A fé pode ser definida em resumo como uma crença ilógica na ocorrência do improvável.

16 de outubro de 2017

Miudezas

Percorro todas as tardes um quarteirão de paredes
nuas.
Nuas e sujas de idade e ventos.
Vejo muitos rascunhos de pernas de grilos pregados
nas pedras.
As pedras, entretanto, são mais favoráveis a pernas
de moscas do que de grilos.
Pequenos caracóis deixaram suas casas pregadas
nestas pedras
E as suas lesmas saíram por aí à procura de outras
paredes.
Asas misgalhadinhas de borboletas tingem de azul
estas pedras.
Uma espécie de gosto por tais miudezas me paralisa.
Caminho todas as tardes por estes quarteirões
desertos, é certo.
Mas nunca tenho certeza
Se estou percorrendo o quarteirão deserto
Ou algum deserto em mim.

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BARROS, Manuel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 39.

8 de outubro de 2017

Envoi

Be silent, old frog.
Let God compound the issue as he must,
And dog eat dog
Unto the final desecration of man’s dust.
The just will be devoured by the unjust.

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DURRELL, Lawrence. Poemas. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p. 198.

Stoic

I, a slave, chained to an oar of poem,
Inhabiting this faraway province where
Nothing happens. I wouldn’t want it to.
I have expressly deprived myself of much:
Conversation, sweets of friendship, love...
The public women of the town don’t appeal.
I wouldn’t want them to. There are no others,
At least for an old, smelly, covetous bookman.
So many things might have fed this avocation,
But what’s the point? It’s too late.

About the matter of death I am convinced,
Also that peace is unattainable and destiny
Impermeable to reason. I am lucky to have
No grave illness, I suppose, no wounds
To ache all winter. I do not drink or smoke.
From all these factors I select one, the silence
Which is that jewel of divine futility,
Refusal to bow, the unvarnished grain
Of the mind’s impudence: you see it so well
On the faces of self-reliant dead.

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DURRELL, Lawrence. Poemas. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p. 196.

13 de setembro de 2017

Vigiando o oco do tempo


Deslizo,
oculto aqui,
vigiando o oco do tempo.
Espaço ermo, parado.
Nada acontece. Nada parece acontecer.
Mas algo flui, o irremediável,
queimando todas as pontes de regresso.
Todo o passado está morto;
só vige o que vem, o que surge.
Todas as coisas íntegras dilaceram-se
ou são dilaceradas.
A velha senhora viajada,
detentora do recorde de milhagens,
temerosa das vacas do Ganges
depois de ter contemplado um berne
ao microscópio.
Berne que agora corrompe e torna pútrida
qualquer carne verde que ela vê
pois seu olho holografa
o esqueleto subjacente a todo corpo vivo.
Viver em mudança.

O assoalho repleto das peles velhas das cobras
e do pelo felpudo das aranhas caranguejeiras.
Viver em mudança.
Que a sobre-humana poesia pica e envenena
um homem.

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SALOMÃO, Waly. O mel do melhor. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 63.

Cobertor


      Pode não haver luz na melancolia: pode ficar tudo insípido e os passos escassearem, diminuindo o alcance a frequência. O próprio batimento cardíaco pode ralentar-se e o horizonte aproximar-se, como um muro que nos alcança pela frente. Pode a alegria parecer ridícula debaixo de uma camada tão espessa (a melancolia é sempre um cobertor, um feltro, que silencia os agudos mas não os graves). Nossa vida pode parecer amaldiçoada desde o nascimento ou ainda mais, desde os mamutes ou desde os trilobitas.
      Sim, pode, mas, ainda assim, alguma certeza a melancolia tem. Um foco, uma concentração diamantina naquilo (estar melancólico), um despreocupar-se com milhares de chamados e deveres, uma redução (uma compressão, mais exatamente) de um material gasoso ao estado quase sólido, que nos dispensa de atender telefones, de ser simpáticos, de falar alto. É isso o que tem de atraente e, no limite, de acolhedor.

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RAMOS, Nuno. Fooquedeu. Piauí, Rio de Janeiro, n. 118, jul. 2016.