29 de março de 2010


      Human beings have always tried to cure psychological disorders through the body. In the Hippocratic tradition, melancholics were advised to drink white wine, in order to counteract the black bile. (This remains an option).


______
MENAND, Louis. Head case: can psychiatry be a science? The New Yorker, New York, v. LXXXVI, n. 2, p. 69-74, mar. 2010.

24 de março de 2010


      É a imaginação que se aterroriza em nós. É a razão que tranquiliza.


______
COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 16.

      A necessidade de crer tende a preponderar, quase em toda parte, sobre o desejo de liberdade.


______
COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 14.

21 de março de 2010

Atriz


as palavras,
se elas saem doloridas,
é a tinta negra que sangra
as frases como feridas.

pouco me adiantam
as palavras floridas
que desabrocham no ar:
pétalas amorfas
na solução do armário.

prefiro um dedo direito
e uma intenção sinistra.

quero de ti
a palavra comida.
quero as palavras
pelos poros da página,
pelo meio da tua virilha.

quero enfim,
segundos antes da cortinas,
escrever aquilo que te cala.


______
MARONA, Leonardo. Pequenas biografias não autorizadas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 17.

20 de março de 2010

Adeus


hoje estou
contando dias e horas
com a ligeira impressão
de que me cortaram fora
os dedos da mão.

existe um ônibus
à minha espera
do outro lado
do pensamento.

ouço seu freio-
motor antecipando
uma curva fechada
onde repousa meu
óleo essencial.

pelas curvas
dessa
nova estrada
queria
encontrar
no lugar das
placas
marcas
de pneus gastos
e nas marcas
rastros
do meu amor.

mas ninguém
conhece o que
ama.

ama-se
surpreendentemente
como quem acolhe
um tiro.


______
MARONA, Leonardo. Pequenas biografias não autorizadas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 12-3.

18 de março de 2010

Soneto do desmantelo azul


A Samuel Mac Dowell, filho


ENTÃO, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.


______
FILHO, Carlos Pena. Livro geral. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.

Para fazer um soneto


A Tomaz Seixas


Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças de infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.


______
FILHO, Carlos Pena. Livro geral. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.

A solidão e sua porta


A Francisco Brennand


Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha)

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.


______
FILHO, Carlos Pena. Livro geral. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.

Soneto para Greta Garbo

(Em louvor da decadência bem comportada)


Entre silêncio e sombra se devora
e em longínquas lembranças se consome;
tão longe que esqueceu o próprio nome
e talvez já nem saiba por que chora.

Perdido o encanto de esperar agora
o antigo deslumbrar que já não cabe,
transforma-se em silêncio, porque sabe
que o silêncio se oculta e se evapora.

Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a face
que já foi sol e agora é cinza fria.

Mas vê nascer da sombra outra alegria:
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que não via.


______
FILHO, Carlos Pena. Livro geral. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.

10 de março de 2010

Os Lamed Wufniks


      Há na terra, e sempre houve, trinta e seis homens íntegros cuja missão é justificar o mundo perante Deus. São os Lamed Wufniks. Não se conhecem entre si e são muito pobres. Se um homem chega a saber que é um Lamed Wufnik, morre imediatamen e há outro, talvez em outra região do planeta, que toma seu lugar. São, sem suspeitar, os secretos pilares do universo. Se não fosse por eles, Deus aniquilaria o gênero humano. São nossos salvadores e não sabem disso.
      Essa crença mística dos judeus foi revelada por Max Brod.
      A origem remota pode ser procurada no capítulo XVIII do Gênesis, no qual o Senhor declara que não destruirá a cidade de Sodoma se nela houver dez homens justos.
      Os árabes têm um personagem análogo, os Kutb.


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BORGES, Jorge Luis & GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. [trad: Carmen V. C. Lima]. São Paulo: Globo, 2000. p. 169.

O pássaro que traz a chuva


      Além do dragão, os agricultores chineses dispõem do pássaro chamado shang yang para obter a chuva. Tem só uma pata; em épocas antigas as crianças saltavam em um pé só e franziam as sobrancelhas afirmando: "Vai chover, vai chover, o shang yang está pulando pra valer". Conta-se, com efeito, que bebe a água dos rios e a deixa cair sobre a terra.
      Um antigo sábio o domesticou e costumava levá-lo na manga. Os historiadores registram que desfilou certa vez ante o trono do príncipe Ch'i, batendo as asas e dando saltos. O príncipe, alarmado, enviou um de seus ministros à corte de Lu, para consultar Confúcio. Este predisse que o shang yang produziria inundações na região e nas comarcas adjacentes. Aconselhou a construção de diques e canais. O príncipe acatou as advertências do mestre e evitou assim grandes desastres.


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BORGES, Jorge Luis & GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. [trad: Carmen V. C. Lima]. São Paulo: Globo, 2000. p. 202.

2 de março de 2010

Erudição


"Cogito, ergo sum."
Assim se diz em latim
e em lugar nenhum.


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SIQUEIRA JR, Waldomiro. Erudição. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 183.

vadeando o rio
(de viola e sem sacola)
vadiando rio


______
XISTO, Pedro. [sem título]. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 175.

rios erradios
se inculcam na curva oculta
(vi-os ah desvios)


______
XISTO, Pedro. [sem título]. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 174.

os mantos revoltos
ouro (preto) pedra pó
os ventos barrocos


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XISTO, Pedro. [sem título]. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig. Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 171.

Pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando


______
LEMINSKI, Paulo. [sem título]. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 163.

Soprando esse bambu
Só tiro
O que lhe deu o vento


______
LEMINSKI, Paulo. [sem título]. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 161.

Rota


Que arda em nós
tudo quanto arde
e que nos tarde a tarde.


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SAVARY, Olga. Rota. In: GUTTILLA, Rodolfo Witzig (org). Boa companhia: haicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 148.

1 de março de 2010

Ficar de joelhos para recitar a lista telefônica


Duração: 15 minutos exatamente
Material: um catálogo telefônico, de preferência antigo
Efeito: respeitoso


      Aqueles que amam os rituais não cansam de repetir: se você fizer os gestos, a crença virá. Fique de joelhos, recite da forma certa que a fé acabará chegando. Apesar disso ofender aqueles que têm uma convicção verdadeira, essa opinião não é desprovida de fundamento. É possível perceber isso através da seguinte experiência.
      Separe durante alguns dias quinze minutos do seu tempo, sempre na mesma hora. Leia em voz alta um número sempre idêntico de páginas do catálogo telefônico. Você articulará inteligentemente, linha após linha, os nomes, sobrenomes, endereços e números. Você deve procurar um catálogo bem antigo. Isso não é indispensável, mas seria interessante que essa leitura fosse o máximo possível desprovida de qualquer utilidade e presa a um texto já estabelecido, transmitido ao longo do tempo.
      Procure não dar um sentido à sua recitação. Não pense que está evocando o espírito central pedindo pelos defuntos, ou que com sua prece alcança a grande interconexão universal. Não. Você lê todos os dias de joelhos, durante quinze minutos, páginas da lista telefônica. Isso é uma prática. O resto não passa de comentários e de floreados.
      Além das eventuais dores nos joelhos, o que você pode aprender com essa experiência? A força extrema dessas restrições absurdas, a fascinação bizarra que elas exercem, o poder que não conseguimos deixar de atribuir a elas. Porque há fortes chances de você não poder continuar sem ter de inventar uma explicação. Você começa provavelmente a atribuir algum motivo para seu comportamento. Você elabora, mesmo que seja para rir, um mito que permite dar conta dessa leitura, de seu objetivo e de sua dimensão.
      Se não conseguir parar, funde uma seita.


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DROIT, Roger-Pol. 101 experiências de filosofia cotidiana. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. p. 165-6.