24 de março de 2014

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. [trad. Ari Roitman & Paulina Watch]. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 92.


      O ator reina no perecível. Todos sabem que, de todas as glórias, a dele é a mais efêmera. Pelo menos é o que se diz. Mas todas as glórias são efêmeras. Do ponto de vista de Sirius, dentro de dez mil anos as obras de Goethe terão se transformado em pó e seu nome estará esquecido. Talvez alguns arqueólogos busquem "testemunhos" da nossa época. Tal ideia sempre foi instrutiva. Bem meditada, reduz nossas agitações à nobreza profunda que encontramos na indiferença. Atrai, sobretudo, nossas preocupações para o mais certo, quer dizer, para o imediato. De todas as glórias, a menos enganosa é a que se vive.

21 de março de 2014

Gosto


      É a faculdade de julgar o belo e o feio, o bom e o ruim, como um prazer que seria critério de verdade. O gosto concerne ao corpo, pela sensação, a ao espírito, pela cultura. Ele se educa; não se cria.
      Ele aspira ao universal (tenho a sensação de que todo mundo deveria achar belo, de direito, o que julgo ser tal), mas permanece subjetivo (não tenho nenhum meio de obter, de fato, a concordância de todos). É o que condena quase inevitavelmente ao conflito ou à polêmica. Não se trata de gostar de tudo, de admirar tudo, menos ainda de fingi-lo. "O verdadeiro gosto", dizia Auguste Comte, "sempre supõe um vivo desgosto". E Kant, mais profundamente: "Uma obrigação de gozar é um absurdo evidente". Não se comanda o gosto, já que é ele que comanda.
      Assim, o prazer sempre tem razão, mas não prova nada. Pode-se discutir o gosto (aspirar ao assentimento necessário de outrem), observa Kant, mas não disputar a seu respeito (decidir com base em provas). É o que quase sempre se esquece, e que nos condena, num outro sentido, às disputas..."

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COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. [trad. Eduardo Brandão]. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 267-8.

17 de março de 2014

Belo belo


Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cuzco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.

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BANDEIRA, Manuel. Belo belo. In: ______. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 199.

7 de março de 2014

Mau cheiro


Os jornais anunciam que o prefeito
vai acabar com o mau cheiro em Olaria.

É melhor do que nada: esta cidade
anda fedendo muito ultimamente.

Não falo da Lagoa que, parece,
já fede por capricho;
nem da praia do Leblon,
do Posto Seis:
                          nossa taxa de lixo.

Falo de um odor que entranha em tudo e que se espalha
pela cidade inteira feito gás  
                                                  e por mais
                                                  banho que tomemos
                                                  e por mais
                                                  desodorantes
                                                  que usemos  
                                                                        (na boca, na axila
                                                                        na vagina;
                                                                        no vaso do banheiro,
                                                                        no setor financeiro)
                                                  não se acaba esse cheiro

______
GULLAR, Ferreira. Mau cheiro. In: ______. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 305.

6 de março de 2014

Digo sim


Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos de meu país
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
           e que meu coração
é um sol de esperança entre pulmões
           e nuvens

Poderia dizer que meu povo
É uma festa só na voz
de Clara Nunes
                          no rodar
das cabrochas no carnaval
da Avenida.
                    Mas não. O poeta mente.

A vida nós a amassamos em sangue
          e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
          em meio à fome
          e dizendo sim
­­­– em meio à violência e a solidão dizendo
          sim –
pelo espanto da beleza
pela flama de Tereza
          pelo meu filho perdido
neste vasto continente
          por Vianinha ferido
          pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
          pelo que virá enfim,
          não digo que a vida é bela
          tampouco me nego a ela:
– digo sim

______
GULLAR, Ferreira. Digo sim. In: ______. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.