27 de julho de 2010

Passagem do ano


O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


______
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.

Natal


Nasce um deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.


______
PESSOA, Fernando. Poesia (1918-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 198.

Versos de Natal


Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até ao fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.


______
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 171.

      O que explica o sucesso de muitas obras é a relação ali encontrada entre a mediocridade das ideias do autor e a mediocridade das ideias do público.


______
CHAMFORT. Máximas e pensamentos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. p. 58.

Ulisses


O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.


______
PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

O pão do meu verso


Meu verso é como o pão do Egito:
a noite passa sobre ele e não podes mais comê-lo.

Devora-o enquanto está fresco,
antes que o recubra a poeira do deserto.

Seu lugar é o clima cálido do coração,
ele não sobrevive ao gelo deste mundo.

É como um peixe na terra seca:
estremece por um instante e logo perece.

Se queres comê-lo e o imaginas fresco,
terás de invocar muitos ídolos.

O que agora bebes é tão somente tua imaginação.
Isto não é uma ilusão, companheiro!


______
RUMI, Jalal ud-Din. Poemas místicos - Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar, 1996.

Emergência


Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas, enfim, profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.


______
QUINTANA, Mario. Apontamentos de história sobrenatural. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

15 de julho de 2010

SIMENON. p. 108.


      [O comissário Maigret] subiu até [o juiz] Coméliau, que encontrou em seu gabinete, pretes a ir almoçar.
      "O senhor prendeu os dois?"
      "O jovem está em meu gabinete, com Lapointe que o interroga."
      "Ele falou?"
      "Mesmo que saiba alguma coisa, não dirá nada antes que coloquemos as provas sob seu nariz."
      "Ele é inteligente?"
      "Justamente, não. Em geral, acabamos vencendo a resistência do inteligente, nem que apenas demonstrando que suas respostas não se sustentam. Um imbecil se contenta em negar, apesar das evidências."


______
SIMENON, Georges. Maigret e o corpo sem cabeça. [trad. Julia da Rosa Simões]. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 108.

12 de julho de 2010

Máxima #57


      A zombaria é, muitas vezes, indigência de espírito.


______
BRUYÈRE, La. Os caracteres. [trad. Alcântara Silveira]. São Paulo: Cultrix, 1965. p.75.

Bukowski


não fale sobre o que
você já fez.
não fale sobre o que
você não fez.
não fale.

não dê bom-dia
a alguém com ressaca.
não dê boa-noite
a alguém com insônia.
não dê.

não jogue pedrinhas
na minha janela.
não falseie a voz, Romeu,
não toque o violão.
não faça.

não discuta arte
com poetas mortos.
não se aproxime
dos que se dizem vivos.
não se aproxime.

não me fale sobre
os filmes que você viu.
não cubra esse bocejo
amarelo de agonia.
não cubra.

não guarde panfletos.
não distribua panfletos.
não aceite panfletos.
não seja um panfleto.
não seja.

seja sensível e não sentimental
mas jamais tente ser sensível.
evite discussões filosóficas
mas, se inevitáveis, esteja armado.
não atire!

não pergunte o que uma pessoa disse
depois que ela disser alguma coisa.
se você não entendeu de imediato
não vai entender em um milhão de anos.
não tente.

não fale em alma ou em deus
como se fossem coisas separadas.
não fale em alma ou em deus
como quem falasse de uma arma.
não fale.

tente não ficar velho o bastante
para se sentir velho o bastante.
mas, se isso for inevitável,
compre uma espingarda.
não ouse!

não discuta ou queira entender os fatos.
não leia jornais nem assista ao noticiário.
é sua única chance de escapar ileso, mas
isso não significa que você vai escapar.
não escape.

mergulhe sempre o mais fundo que puder.
não guarde o ar com medo de não ter ar.
não tema.

não se esqueça: acima de tudo
nunca deixe que te digam
o que é certo ou absurdo.
martele o prego da cruz exclusiva,
não pare.


______
MARONA, Leonardo. Pequenas biografias não-autorizadas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. p. 39-41.

Máxima #37


      Não há nada, por mais sutil, simples e imperceptível, em que não haja maneiras que nos revelem. Um tolo não sai, nem entra, nem se senta, nem se levanta, nem se cala, nem permanece de pé como um homem inteligente.


______
BRUYÉRE, La. Os caracteres. [trad. Alcântara Silveira]. São Paulo: Cultrix, 1965. p. 42.