25 de outubro de 2011

Três peças circenses

I- O PRESTIDIGITADOR


Este papel que se oferece virgem
ao bel-prazer da pena e tinta
é todo teu, só teu, como não é,
nem nunca foi, a tua vida.

A gozosa vertigem dos começos -
esse friozinho bom no estômago -
aqui encontra lastro, ainda que tênue,
na realidade tão incômoda.

E se esta página inaugural
negar-te a façanha de um verso,
um gesto rápido há de restaurar
a virgindade do caderno.

As vértebras flexíveis da espiral
não vão guardar nenhum vestígio
(como fazem as lombadas traiçoeiras)
deste pequeno infanticídio.

Somente a nova página primeira
testemunhou a recaída.
Tenta outra vez: Este papel, etc.
(Restam noventa e nove ainda.)



II- O ENCANTADOR DE SERPENTES


Por entre as linhas incautas da leitura
ideia insidiosa se insinua,

como se sugerisse um outro texto
mais vivo, extremo, e verdadeiro

de uma verdade esguia e peçonhenta
a recobrir de visgo tua página

já quase impenetrável -
                                     felizmente

resta o recurso derradeiro:
Para. Volta atrás. Faz do palimpsesto

papel vulgar. Agora continua,
retoma a doce flauta da literatura.



III- O FUNÂMBULO


Entre a palavra e a coisa
o salto sobre o nada.

Em torno da palavra
muitas camadas de sonho.
Uma cebola. Um átomo.
Uma cebola ávida.
Entre uma e outra camada
nada.

Saltam sobre o abismo,
tomam o vazio de assalto.
De píncaro a píncaro
projetam-se, impávidas,
epifânicas, esdrúxulas,
teimosas e dançarinas.

O salto é uma dança,
a teima é uma doença.
Em torno da cebola
o ar é tenso de lágrimas.


______
BRITTO, Paulo Henriques. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. pp. 11-5.

22 de outubro de 2011

MEANS, David. El Morro. The New Yorker, Fiction, August 29, 2011, p. 62.

(...)
      A guy was out walking in the desert one day when he came upon a horse and a dog. The horse gave a whinny. Then another whinny. Then the dog barked at the horse, and the horse gave yet another whinny. As the man got closer to the animals, he found himself able to understand the particulars of this exchange. All this talk of running free, of eating wild grass, of drinking from freshwater lakes means nothing to me, the dog said. I'm waiting for you to talk about hunting a rabbit, about tearing meat from a bone, about blood and gore. And the horse said, I'm sick of hearing about blood and gore. I'm tired of your stories about sniffing out wild muskrats. I'm waiting to hear you talk of wild clover, of fresh juniper leaves. Then the man felt compelled to interject. Meat and grass. What's the difference? The function of each is to give you life. Without that function, you're just bones. Then both animals turned on the man. The dog tore at his legs, and the horse drove his hooves into his face. When the man was dead, they went back to their argument.
(...)

20 de outubro de 2011

Noite morta

Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.

Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.

No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.

O córrego chora.
A voz da noite...


(Não desta noite, mas de outra maior.)

______
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 118.

17 de outubro de 2011

Orações na arca de Noé

ORAÇÃO DO GALO


Convém lembrar, Senhor,
que eu faço nascer o sol.
Sou seu servidor,
mas a importância de minha função
me compele a uns tantos brilharetes e mundaniquices.
Noblesse oblige...
Apesar de tudo,
sou seu servidor.
Mas convém não se esquecer, Senhor,
de que eu faço nascer o sol.
                                                                          Amém.


ORAÇÃO DA BORBOLETA


Senhor!
(Em que ponto eu estava?
Ah, sim, este sol, esta flor...)
Obrigada. Sua criação é uma beleza.
E este perfume de rosa!
(Mas onde é mesmo que eu estava?)
A gota de orvalho
acende fogueiras no coração do lírio.
Eu precisava ir...
Nem sei mais!
O vento pintou suas fantasias
em minhas asas. Fantasias...
(Em que ponto eu estava?)
Ah, é verdade, Senhor,
eu tinha uma coisa para lhe dizer:
                                          Amém.


ORAÇÃO DO GATO


Senhor,
eu sou o Gato.
Não, precisamente,
que tenha alguma coisa a lhe pedir.
Não peço nada a ninguém.
Mas se por acaso o Senhor tivesse
aí nos celeiros do Paraíso
um ratinho branco
ou um pires de leite...
Sei de alguém que aprecia essas coisas.
O Senhor vai amaldiçoar, um dia,
a raça canina?
Ah, nesse caso, eu diria:
                           Amém.


ORAÇÃO DO RATO


Sou tão cinzento, meu Deus.
Lembra-se de mim?
Sempre vigiado,
sempre caçado,
vou roendo mediocremente minha vida.
Nunca ninguém me deu nada.
Por que me acusam de ser rato?
Não foi o Senhor que me criou?
Só peço uma coisa: ficar escondido.
Me dê só com que matar a fome
longe das garras
daquele demônio de olhos verdes.
                                                      Amém.


ORAÇÃO DO BOI


Me dê tempo, meu Deus.
Os homens são tão afobados.
Faça com que eles compreendam: eu não posso
andar depressa.
Me dê tempo de comer.
Me dê tempo de caminhar.
Me dê tempo de dormir.
Me dê tempo de pensar.
                                      Amém.


______
GASZTOLD, Carmen Bernos de. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia traduzida. São Paulo: Cosac Naify, 2011. pp. 157-65.

5 de outubro de 2011

      Permitir acreditar que poderíamos ter êxito em nossas vidas como o temos com um suflê ou uma carne assada não seria o efeito de uma pretensão desmedida, quando pensamos em tudo o que na nossa existência não depende em nada de nós, mas regressa aos acasos do nascimento, à pura contingência dos acontecimentos, à sorte ou aos infortúnios mais cegos?


______
FERRY, Luc. O que é uma vida bem-sucedida? [trad. Karina Jannini]. Rio de Janeiro: Difel, 2010. p. 14.

1 de outubro de 2011

Criação do mundo

      A passagem da infinita perfeição à imperfeita finitude, pela qual Deus, dizem os teólogos, condescende a já não ser tudo. É o que Valery chamava de diminuição divina: passa-se do mais ao menos ("Deus e todas as criaturas são menos que Deus só", escreve Simone Weil), do bem absoluto ao mal relativo. Criar, para Deus, é retirar-se. É a única solução para o problema do mal que me parece teologicamente satisfatória (mesmo que, filosoficamente, não o seja de forma alguma). Deus, sendo todo o Bem possível, podia criar apenas o menos bem que ele - só podia criar o mal. Por que o fez? Por amor, responde Simone Weil: para nos deixar existir. O mundo nada mais é que o vazio que daí resulta, como que o vestígio de um Deus ausente.
      O vazio eu enxergo, mas não o vestígio.


______
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. [trad. Eduardo Brandão]. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 132-3.