15 de maio de 2014

Garrafa

Vá dizer aos camaradas
Que fui para o alto-mar
E que minha barca naufraga.

Leme partido.
Casco arrombado.
Sem farol afunda
Nas pedras dos arrecifes.

Bandeira aos farrapos. Nenhuma estrela guia
Célere desce lá do céu para minha companhia.
Destroços: proa, velame, quilha,
prancha, rede de pescar, arpão,
bússola, astrolábo, boia, sonar...

Que fui para o alto-mar
E que Medina e Meca já não significam
                                 mais nada para mim.

Entrevado
Vista turva
Porto nenhum avisto
Nas trevas da cerração.

Pelejo entre os vagalhões e as rocas
Não apuro os nós de lonjuras das seguras docas
Tampouco os altos e baixos relevos das pedras
                                                         que roncam ais
                                            no quebra-mar do cais
Ou os tapetes de mijo e restos de peixes
E patas de caranguejo e frutas podres
Tecidos pelas alpercatas e os pés nus sobre a rampa
                                                        do Mercado-Modelo.

Um marinheiro conserta sua embarcação
                                   — corpo de intempestiva casa —
Em pleno alto-mar aberto.
                                             Vá dizer aos meus amigos.

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SALOMÃO, Waly. Garrafa. In: ______. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 362-3.