26 de novembro de 2011

Glory is like a circle in the water,
Which never ceaseth to enlarge itself,
Till by broad spreading it disperses to naught.


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SHAKESPEARE, William. King Henry the Sixth, Part I (Pucelle at I, 2).

23 de novembro de 2011

Kyrie

Sometimes my life opened its eyes in the dark.
A feeling as if crowds drew through the streets
in blindness and anxiety on the way towards a miracle,
while I invisibly remain standing.

As the child falls asleep in terror
listenig to the heart's heavy tread.
Slowly, slowly until morning puts its rays in the locks
and the doors of darkness open.


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TRANSTRÖMER, Tomas. Selected poems. [trad. Robin Fulton]. Hopewell: Ecco, 2010. p. 36.

21 de novembro de 2011

Ateísmo

         O a privativo diz, aqui, o essencial: ser ateu é ser sem deus (á-theos), seja por não crer em nenhum deus, seja por afirmar a inexistência de todos.
         Há portanto duas maneiras de ser ateu: não crer em Deus (ateísmo negativo) ou crer que Deus não existe (ateísmo positivo, ou mesmo militante). Ausência de uma crença ou crença numa ausência. Ausência de Deus ou negação de Deus.
         O primeiro desses dois ateísmos é muito próximo do agnosticismo, de que só se distingue por uma opção mais afirmada, mesmo que negativa. O agnóstico não crê nem descrê: ele duvida, se interroga, hesita ou se recusa a escolher. Ele assinala a opção "sem opinião" da grande pesquisa metafísica ("Você crê em Deus?"). Já o ateu responde claramente não. Suas razões? Elas variam, é claro, de acordo com os indivíduos, mas convergem, no mais das vezes, na recusa de adorar. O ateu não tem uma ideia suficientemente elevada do mundo, da humanidade e de si mesmo para julgar verossímel que um Deus tenha podido criá-los. Horrores demais no mundo, mediocridade demais no homem. A matéria é uma causa mais plausível. O acaso, uma desculpa mais aceitável. E, depois, um Deus bom e onipotente (um Deus pai!) corresponde tão bem a nossos desejos mais fortes e mais infantis, que é o caso de se perguntar se ele não foi inventado por isso mesmo - para nos tranquilizar, para nos consolar, para nos fazer crer e obedecer. Deus, por definição, é o que se pode esperar de melhor. É o que o torna suspeito. O amor infinito, o amor onipotente, o amor mais forte que a morte e que tudo... É bom demais para ser verdade.
         O ateu, em vez de acalentar ilusões, prefere enfrentar como pode a angústia, as aflições, o desespero, a solidão, a liberdade. Não é que renuncie a toda serenidade, a toda alegria, a toda esperança, a toda lei. Mas ele só leva em conta as que são humanas, e que valem unicamente para esta vida. Isso lhe basta? Não necessariamente, nem geralmente. O real só basta para quem se contenta com ele. É o que se chama sabedoria, que é a santidade dos ateus.


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COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. [trad. Eduardo Brandão]. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 64.

Da moda, máxima #6

      Se você diz aos homens e sobretudo aos nobres que Fulano tem virtude, eles dizem: "Que a guarde"; que ele tem muito espírito, principalmente esse espírito que agrada e diverte, eles respondem: "Melhor para ele"; que ele é muito culto, que sabe muito, eles perguntam que horas são e como está o tempo; mas se você lhes disser que há um Tigilio que bebe de um trago um copo de aguardente e, coisa maravilhosa! - que repete diversas vezes essa façanha numa refeição, então dizem eles: "Onde está ele? Leve-o amanhã em casa ou hoje de noite. Você o leva?" Leva-se, e esse homem, próprio para figurar nas exibições de feiras ou ser mostrado a domicílio por dinheiro, é admitido na intimidade deles.


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LA BRUYÈRE. Os caracteres. [trad. Alcântara Silveira]. São Paulo: Cultrix, 1965. p. 174-5.

19 de novembro de 2011

Quatro sonetos de meditação

II

Uma mulher me ama. Se eu me fosse
Talvez ela sentisse o desalento
Da árvore jovem que não ouve o vento
Inconstante e fiel, tardio e doce

Na sua tarde em flor. Uma mulher
Me ama como a chama ama o silêncio
E o seu amor vitorioso vence
O desejo da morte que me quer.

Uma mulher me ama. Quando o escuro
Do crepúsculo mórbido e maduro
Me leva a face ao gênio dos espelhos

E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos
Vindos de ver a morte em mim divina:
Uma mulher me ama e me ilumina.


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MORAES, Vinicius de. Livro de sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 33.

17 de novembro de 2011

Tagarelice

      A palavra desvalorizada pelo excesso ou pela superficialidade. É ter medo do silêncio ou do verdadeiro.


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COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. [trad. Eduardo Brandão]. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 579.

13 de novembro de 2011

129 - Liberalidade proibida

      Não há no mundo amor e bondade bastantes, para que ainda possamos dá-los a seres imaginários.


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NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. [trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 99.

127 - Veneração da loucura

      Tendo-se notado que frequentemente uma emoção tornava a mente mais clara e provocava ideias felizes, pensou-se que através das emoções mais intensas participaríamos das mais felizes ideias e inspirações: e assim se veneraram os loucos como sábios e oráculos. Na base disso está um raciocínio errado.


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NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. [trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 98.

108. A dupla luta contra o infortúnio

      Quando um infortúnio nos atinge, podemos superá-lo de dois modos: eliminando a sua causa ou modificando o efeito que produz em nossa sensibilidade; ou seja, reinterpretando o infortúnio como um bem, cuja utilidade talvez se torne visível depois. A religião e a arte (e também a filosofia metafísica) se esforçam em produzir a mudança da sensibilidade, em parte alterando nosso juízo sobre os acontecimentos (por exemplo, com ajuda da frase: "Deus castiga a quem ama"), em parte despertando prazer na dor, na emoção mesma (ponto de partida da arte trágica). Quanto mais alguém se inclina a reinterpretar e ajustar, tanto menos pode perceber e suprimir as causas do infortúnio; o alívio e a anestesia momentâneos, tal como se faz na dor de dente, por exemplo, bastam-lhe mesmo nos sofrimentos mais graves. Quanto mais diminuir o império das religiões e de todas as artes da narcose, tanto mais os homens se preocuparão em realmente eliminar os males: o que, sem dúvida, é mau para os poetas trágicos - pois há cada vez menos matéria para a tragédia, já que o reino do destino inexorável e invencível cada vez mais se estreita, - mas é ainda pior para os sacerdotes: pois até hoje eles viveram da anestesia dos males humanos.


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NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. [trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 85.

116. O cristão comum

      Se o cristianismo tivesse razão em suas teses acerca de um Deus vingador, da pecaminosidade universal, da predestinação e do perigo de uma danação eterna, seria um indício de imbecilidade e falta de caráter não se tornar padre, apóstolo ou eremita e trabalhar, com temor e tremor, unicamente pela própria salvação; pois seria absurdo perder assim o benefício eterno, em troca de comodidade temporal. Supondo que se creia realmente nessas coisas, o cristão comum é uma figura deplorável, um ser que não sabe contar até três, e que, justamente por sua incapacidade mental, não mereceria ser punido tão duramente quanto promete o cristianismo.


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NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. [trad. de Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 95.

25 de outubro de 2011

Três peças circenses

I- O PRESTIDIGITADOR


Este papel que se oferece virgem
ao bel-prazer da pena e tinta
é todo teu, só teu, como não é,
nem nunca foi, a tua vida.

A gozosa vertigem dos começos -
esse friozinho bom no estômago -
aqui encontra lastro, ainda que tênue,
na realidade tão incômoda.

E se esta página inaugural
negar-te a façanha de um verso,
um gesto rápido há de restaurar
a virgindade do caderno.

As vértebras flexíveis da espiral
não vão guardar nenhum vestígio
(como fazem as lombadas traiçoeiras)
deste pequeno infanticídio.

Somente a nova página primeira
testemunhou a recaída.
Tenta outra vez: Este papel, etc.
(Restam noventa e nove ainda.)



II- O ENCANTADOR DE SERPENTES


Por entre as linhas incautas da leitura
ideia insidiosa se insinua,

como se sugerisse um outro texto
mais vivo, extremo, e verdadeiro

de uma verdade esguia e peçonhenta
a recobrir de visgo tua página

já quase impenetrável -
                                     felizmente

resta o recurso derradeiro:
Para. Volta atrás. Faz do palimpsesto

papel vulgar. Agora continua,
retoma a doce flauta da literatura.



III- O FUNÂMBULO


Entre a palavra e a coisa
o salto sobre o nada.

Em torno da palavra
muitas camadas de sonho.
Uma cebola. Um átomo.
Uma cebola ávida.
Entre uma e outra camada
nada.

Saltam sobre o abismo,
tomam o vazio de assalto.
De píncaro a píncaro
projetam-se, impávidas,
epifânicas, esdrúxulas,
teimosas e dançarinas.

O salto é uma dança,
a teima é uma doença.
Em torno da cebola
o ar é tenso de lágrimas.


______
BRITTO, Paulo Henriques. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. pp. 11-5.

22 de outubro de 2011

MEANS, David. El Morro. The New Yorker, Fiction, August 29, 2011, p. 62.

(...)
      A guy was out walking in the desert one day when he came upon a horse and a dog. The horse gave a whinny. Then another whinny. Then the dog barked at the horse, and the horse gave yet another whinny. As the man got closer to the animals, he found himself able to understand the particulars of this exchange. All this talk of running free, of eating wild grass, of drinking from freshwater lakes means nothing to me, the dog said. I'm waiting for you to talk about hunting a rabbit, about tearing meat from a bone, about blood and gore. And the horse said, I'm sick of hearing about blood and gore. I'm tired of your stories about sniffing out wild muskrats. I'm waiting to hear you talk of wild clover, of fresh juniper leaves. Then the man felt compelled to interject. Meat and grass. What's the difference? The function of each is to give you life. Without that function, you're just bones. Then both animals turned on the man. The dog tore at his legs, and the horse drove his hooves into his face. When the man was dead, they went back to their argument.
(...)

20 de outubro de 2011

Noite morta

Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.

Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.

No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.

O córrego chora.
A voz da noite...


(Não desta noite, mas de outra maior.)

______
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 118.

17 de outubro de 2011

Orações na arca de Noé

ORAÇÃO DO GALO


Convém lembrar, Senhor,
que eu faço nascer o sol.
Sou seu servidor,
mas a importância de minha função
me compele a uns tantos brilharetes e mundaniquices.
Noblesse oblige...
Apesar de tudo,
sou seu servidor.
Mas convém não se esquecer, Senhor,
de que eu faço nascer o sol.
                                                                          Amém.


ORAÇÃO DA BORBOLETA


Senhor!
(Em que ponto eu estava?
Ah, sim, este sol, esta flor...)
Obrigada. Sua criação é uma beleza.
E este perfume de rosa!
(Mas onde é mesmo que eu estava?)
A gota de orvalho
acende fogueiras no coração do lírio.
Eu precisava ir...
Nem sei mais!
O vento pintou suas fantasias
em minhas asas. Fantasias...
(Em que ponto eu estava?)
Ah, é verdade, Senhor,
eu tinha uma coisa para lhe dizer:
                                          Amém.


ORAÇÃO DO GATO


Senhor,
eu sou o Gato.
Não, precisamente,
que tenha alguma coisa a lhe pedir.
Não peço nada a ninguém.
Mas se por acaso o Senhor tivesse
aí nos celeiros do Paraíso
um ratinho branco
ou um pires de leite...
Sei de alguém que aprecia essas coisas.
O Senhor vai amaldiçoar, um dia,
a raça canina?
Ah, nesse caso, eu diria:
                           Amém.


ORAÇÃO DO RATO


Sou tão cinzento, meu Deus.
Lembra-se de mim?
Sempre vigiado,
sempre caçado,
vou roendo mediocremente minha vida.
Nunca ninguém me deu nada.
Por que me acusam de ser rato?
Não foi o Senhor que me criou?
Só peço uma coisa: ficar escondido.
Me dê só com que matar a fome
longe das garras
daquele demônio de olhos verdes.
                                                      Amém.


ORAÇÃO DO BOI


Me dê tempo, meu Deus.
Os homens são tão afobados.
Faça com que eles compreendam: eu não posso
andar depressa.
Me dê tempo de comer.
Me dê tempo de caminhar.
Me dê tempo de dormir.
Me dê tempo de pensar.
                                      Amém.


______
GASZTOLD, Carmen Bernos de. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia traduzida. São Paulo: Cosac Naify, 2011. pp. 157-65.

5 de outubro de 2011

      Permitir acreditar que poderíamos ter êxito em nossas vidas como o temos com um suflê ou uma carne assada não seria o efeito de uma pretensão desmedida, quando pensamos em tudo o que na nossa existência não depende em nada de nós, mas regressa aos acasos do nascimento, à pura contingência dos acontecimentos, à sorte ou aos infortúnios mais cegos?


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FERRY, Luc. O que é uma vida bem-sucedida? [trad. Karina Jannini]. Rio de Janeiro: Difel, 2010. p. 14.

1 de outubro de 2011

Criação do mundo

      A passagem da infinita perfeição à imperfeita finitude, pela qual Deus, dizem os teólogos, condescende a já não ser tudo. É o que Valery chamava de diminuição divina: passa-se do mais ao menos ("Deus e todas as criaturas são menos que Deus só", escreve Simone Weil), do bem absoluto ao mal relativo. Criar, para Deus, é retirar-se. É a única solução para o problema do mal que me parece teologicamente satisfatória (mesmo que, filosoficamente, não o seja de forma alguma). Deus, sendo todo o Bem possível, podia criar apenas o menos bem que ele - só podia criar o mal. Por que o fez? Por amor, responde Simone Weil: para nos deixar existir. O mundo nada mais é que o vazio que daí resulta, como que o vestígio de um Deus ausente.
      O vazio eu enxergo, mas não o vestígio.


______
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. [trad. Eduardo Brandão]. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 132-3.

21 de setembro de 2011

De sacrifício

Meu carneiro
é bíblico
Branco
de olho azul
Cego


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ALVIM, Francisco. O metro nenhum. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 19.

Fragilidade

Hora suave

Aranhas suam frios
fios

Mortalha
de alhos?

Réstias debruçadas
de paredes de cal,
brancas

Cacos de ar


______
ALVIM, Francisco. O metro nenhum. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 15.

29 de maio de 2011

      A experiência me diz que, quando todo mundo se alia para criticar alguma coisa, muitas vezes o que está em jogo é mais a cumplicidade do grupo do que a objetividade do julgamento.


______
VENTÓS, Xavier Rubert de. Deus, entre outros inconvenientes. [trad. Eliana Aguiar]. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. p. 9.

29 de abril de 2011

A alegria

O sofrimento não tem
nenhum valor.
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).

Sofres tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?

                   A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
                         querem estar contentes.


______
GULLAR, Ferreira. Poesia completa, teatro e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 263.

3 de abril de 2011

      Não há razão para escrevermos um livro se não o pretendermos grande. Desde que aprendi a ler e comecei a escrever histórias o fiz por vaidade - é nisso que o homem se resume, em vaidade e autopiedade -, mas inconscientemente pretendia também dizer aos outros: olhem, eu observei, comparei e cheguei a uma conclusão. Escrevendo, enriqueço meu espírito, aprendo sobre mim mesmo e, aprendendo sobre mim mesmo, apreendo vocês e o mundo. Claro que eu não pensava nisso desse jeito. Tudo estava - como está até hoje - muito confuso.


______
WOLFF, Fausto. A milésima segunda noite. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p. 7.