13 de novembro de 2011

108. A dupla luta contra o infortúnio

      Quando um infortúnio nos atinge, podemos superá-lo de dois modos: eliminando a sua causa ou modificando o efeito que produz em nossa sensibilidade; ou seja, reinterpretando o infortúnio como um bem, cuja utilidade talvez se torne visível depois. A religião e a arte (e também a filosofia metafísica) se esforçam em produzir a mudança da sensibilidade, em parte alterando nosso juízo sobre os acontecimentos (por exemplo, com ajuda da frase: "Deus castiga a quem ama"), em parte despertando prazer na dor, na emoção mesma (ponto de partida da arte trágica). Quanto mais alguém se inclina a reinterpretar e ajustar, tanto menos pode perceber e suprimir as causas do infortúnio; o alívio e a anestesia momentâneos, tal como se faz na dor de dente, por exemplo, bastam-lhe mesmo nos sofrimentos mais graves. Quanto mais diminuir o império das religiões e de todas as artes da narcose, tanto mais os homens se preocuparão em realmente eliminar os males: o que, sem dúvida, é mau para os poetas trágicos - pois há cada vez menos matéria para a tragédia, já que o reino do destino inexorável e invencível cada vez mais se estreita, - mas é ainda pior para os sacerdotes: pois até hoje eles viveram da anestesia dos males humanos.


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NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. [trad. Paulo César de Souza]. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 85.

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