Num dia 30 ou 31 de dezembro, fui visitá-lo na Elizart, seu
sebo na rua Marechal Floriano, no velho centro. Na saída, soltei uma frase:
"Quando morrer, não quero ir para o céu. Quero ir para um sebo". Ele
gostou e anotou. Manoel Mattos, ou Manel, à antiga, era assim. Vivia pelas
palavras, ditas ou impressas.
Se minha ideia era a de ir para um sebo depois de morto,
Manel fez melhor: praticamente nasceu em um, fundado por seu pai, e passou a
vida nele. O mundo era só uma extensão das estantes. Não se contentava em
comprar livros raros e machucados, às vezes sem capa, dar-lhes um trato – como
copiar à mão o sumário e aplicá-lo à guisa de capa – e em exibi-los em bancadas
para o primeiro que passasse. Conforme o livro, tinha de procurar a pessoa que,
a seu ver, fora feita para ele.
Quando lhe disse que estava pesquisando sobre Maneco de
Almeida, autor de "Memórias de um
Sargento de Milícias", cumulou-me de livros, revistas e recortes
raros sobre seu xará, material que tirou de sua reserva particular. Não
contente, subiu comigo ao morro da Conceição, um dos cenários do livro. Manel
sabia tudo sobre cada esquina daquele e de outros berços do Rio.
Pouco depois, caiu doente. O câncer castigou-o por mais de
um ano. Mas, a cada má notícia, ele se superava e vencia mais uma etapa. Até
que, no dia 12 de abril, ligou-me no fim da tarde. Esperava viver mais um dia –
só mais um – mas sabia que não seria possível. "Não pensei que fosse
acabar como peru, morrendo de véspera", ele riu. Citou minha frase pela última
vez. Despediu-se tranquilo e partiu poucas horas depois.
Visitá-lo na Elizart no último dia útil do ano já era uma
tradição. Continuarei a fazer isso. O sebo estará lá, tocado por seus irmãos e
seu filho. E sei que, de muitas maneiras, Manel também estará. Afinal, é o seu
céu.
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CASTRO, Ruy. O sebo e o céu. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A2, 16 maio 2012.
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