1 de julho de 2025

FERNANDES, Millôr. Livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974. p. 158-9.

Incapaz de dominar suas mais mesquinhas paixões, sem controle do próprio egoísmo, tolo, tonto, sofrido, inseguro e criminoso, o homem lança suas derradeiras ambições para a posteridade, quando será imantado numa glória a que não assistirá, mitificado naquilo que nunca foi. E sua ânsia de nobreza é colocada em ser esplêndido em cinzas, faustoso em túmulos, solenizando a morte com incrível esplendor, transformando em cerimônia e pompa toda a estupidez de sua natureza.

FERNANDES, Millôr. Livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974. p. 156.

Quando Carlyle afirmou que o "o homem é o único animal que ri" não fazia com isso uma mera constatação biológica. Biologicamente a hiena também ri. Fazia uma constatação psicológica e social. Seu erro era apenas admitir o riso como uma qualidade humana, quando é um defeito. O homem, da maneira porque vive, não tem do que rir. Por isso, à frase de Carlyle, deve-se acrescentar: "E é rindo que ele mostra o animal que é".

18 de junho de 2025

Mediocridade

A média, mas considerada em sua insuficiência. É nosso estado normal, mas não é a norma. Para o espírito, somente a exceção merece ser a regra.

A mediocridade é o oposto do justo meio aristotélico: não é uma linha de crista entre dois abismos, mas uma sarjeta, como as que se faziam nas ruas na Idade Média, entre duas rampas. Basta deixar-se escorregar para nela cair.


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COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 378.

Humor

É uma forma de graça, mas que faz rir principalmente do que não é engraçado. Por exemplo, o condenado à morte, evocado por Freud, que conduzem numa segunda-feira ao patíbulo: “A semana está começando bem!”, murmura ele. Ou Woody Allen: “Não só Deus não existe, mas tentem encontrar um encanador no fim de semana!” Ou Pierre Desproges anunciando sua doença ao público: “Se você for mais canceroso que eu, está morto!” Isso supõe um trabalho, uma elaboração, uma criação. Não é o real que é engraçado, mas o que dele se diz. Não seu sentido, mas sua interpretação – ou sua falta de sentido. Não o prazer que nos oferece, mas o que sentimos ao constatar que ele não propõe nenhum que possa nos satisfazer. Conduta de luto: buscamos um sentido; constatamos que ele falta ou se destrói; rimos do nosso próprio fracasso. E isso, porém, é como um triunfo do espírito.

O humor se distingue da ironia pela reflexividade ou pela universalidade. O ironista ri dos outros. O humorista, de si ou de tudo. Ele se inclui no riso que provoca. É por isso que nos faz bem, ao pôr o ego à distância. A ironia despreza, exclui, condena; o humor perdoa ou compreende. A ironia fere; o humor cura ou aplaca.

Há algo de trágico no humor; mas é um trágico que se recusa a levar-se a sério. Ele trabalha sobre as nossas esperanças, para assinalar seu limite, sobre nossas decepções, para rir delas, sobre nossas angústias, para superá-las. “Não é que eu tenha medo da morte”, explica por exemplo Woody Allen, “mas preferiria estar em outro lugar quando ela ocorrer”. Defesa derrisória? Sem dúvida. Mas que assim se confessa e que indica muito bem, contra a morte, que todas as defesas o são. Se os fiéis tivessem senso de humor, que restaria da religião?


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COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 287.

15 de junho de 2025

FERNANDES, Millôr. Livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974. p. 103.

É fundamental aprender a conviver com o medo, perder o mais cedo possível a esperança de nos livrarmos dele. Guimarães Rosa disse com sabedoria: "A cada dia, a cada hora, o homem aprende uma espécie nova de medo". Vivemos com medo físico, com medo econômico, com o medo metafísico diante da própria ameaça existencial que faz de nossos dias uma caminhada irreversível para a doença, para a velhice e para a morte: para o desastre. O medo é a mais fiel de nossas qualidades, nosso definitivo companheiro. Mesmo no silêncio e no escuro – ou sobretudo aí – não nos deixa. Quando o lugar é terrível, a situação desesperadora, as forças nos abandonam, a coragem nos deixa, o medo fica e cresce. Segue-nos como uma sombra e, inúmeras vezes, se confunde com ela. Nasce conosco e, se nos mata, morre conosco.

14 de junho de 2025

FERNANDES, Millôr. Livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974. p. 97.

As conquistas técnicas foram tornando cada vez mais fácil outra conquista, a das massas, passivas e alienadas. Já ninguém mais precisa se esforçar longamente, viajar muito, perder anos até alcançar a discutível popularidade. Hoje uma celebridade é todo débil mental que aparecer meia dúzia de vezes na televisão.

FERNANDES, Millôr. Livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974. p. 78.

O governo teima em atrair turistas para o Rio, cantando, em prosa e verso, as inexcedíveis belezas da cidade (do país). Acho que o Rio, justamente, deveria ser interditado ao turista, como vergonha nacional.

FERNANDES, Millôr. Livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974. p. 70.

Não conheço ninguém que, como eu, tenha tanta noção de ser um homem medíocre. O que, desde logo, me torna um homem extraordinário.

FERNANDES, Millôr. Livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974. p. 59.

Não podemos, como profissionais, oferecer ao público que nos frequenta, uma criação que ele também se julgue capaz de realizar. Seria o mesmo que um artesão fabricante de cadeiras nos oferecer uma cadeira feita com três ripas mal pregadas, mal alinhadas e mal envernizadas e nos cobrar por isso um preço profissional. No campo viril do artesanato, isso é impossível, pelo menos a esse ponto absurdo e pelo menos em larga escala. Uma cadeira comprada será sempre melhor do que as que conseguimos fazer em casa com nossas parcas habilidades e ferramentas inadequadas. E, no entanto, sem sombra de dignidade profissional, artistas, jornalistas e, sobretudo, produtores de televisão, não têm vergonha de apresentar ao público espetáculos degradantes como caráter, humilhantes como representação geral do nível artístico do país, e perigosíssimos no sentido de que uma massa de estupidez muito grande acaba embotando mesmo o potencial de inteligência mais privilegiado.

FERNANDES, Millôr. Livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974. p. 49.

O homem brilhante, capaz de raciocinar a todo momento, dinâmico no seu pensamento, varia e muda com o tempo e não é mais hoje o que era há dez anos atrás. Mas o imbecil, que só tem uma ideia, incapaz de raciocinar é, forçosamente, um homem de grande convicção.

13 de junho de 2025

FERNANDES, Millôr. Livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974. p. 101.

A televisão foi um meio inventado pelo homem medíocre para ser utilizado pela mediocridade para a mediocridade. Deveria se chamar mediovisão.

25 de maio de 2025

BRODSKY, Joseph. Watermark: an essay on Venice. London: Penguin, 2013. p 106-9.

The eye is the most autonomous of our organs. It is so because the objects of its attention are inevitably situated on the outside. Except in a mirror, the eye never sees itself. It is the last to shut down when the body is falling asleep. It stays open when the body is stricken with paralysis or dead. The eye keeps registering reality even when there is no apparent reason for doing this, and under all circumstances. The question is: why? And the answer is: because the environment is hostile. Eyesight is the instrument of adjustment to an environment which remains hostile no matter how well you have adjusted to it. The hostility of the environment grows proportionately to the length of your presence in it, and I am speaking not of old age only. In short, the eye is looking for safety. That explains the eye predilection for art in general and Venetian art in particular. That explains the eye’s appetite for beauty, as well as beauty’s own existence. For beauty is solace, since beauty is safe. It doesn’t threaten you with murder or make you sick. A statue of Apollo doesn’t bite, nor will Carpaccio’s poodle. When the eye fails to find beauty – alias solace – it commands the body to create it, or, failing that, adjusts itself to perceive virtue in ugliness. In the first instance, it relies on human genius; in the second, it draws on one’s reservoir of humility. The latter is in greater supply, and like every majority tends to make laws. Let’s have an illustration; let’s take a young maiden. At a certain age one eyes passing maidens without applied interest, without aspiring to mount them. Like a TV set left switched on in an abandoned apartment, the eye keeps sending in images of all these 5’8” miracles, complete with light chestnut hair, Perugino ovals, gazelle eyes, nurse-like bosoms, wasp waists, dark-green velvet dresses, and razor sharp tendons. An eye may zero in on them in a church at someone’s wedding or, worse still, in a bookstore’s poetry section. Reasonably farsighted or resorting to the counsel of the ear, the eye may learn their identities (which come with names as breathtaking as, say, Arabella Ferri) and, alas, their dishearteningly firm romantic affiliations. Regardless of such data’s uselessness, the eye keeps collecting it. In fact, the more useless the data, the sharper the focus. The question is why, and the answer is that beauty is always external; also, that it is the exception to the rule. That’s what – its location and its singularity – sends the eye oscillating wildly or – in militant humility’s parlance – roving. For beauty is where the eye rests. Aesthetic sense is the twin of one’s instinct for self-preservation and is more reliable than ethics. Aesthetic’s main tool, the eye, is absolutely autonomous. In its autonomy, it is inferior only to a tear.

7 de abril de 2025

SIMAS, Luiz Antonio. Meus heróis civilizadores. In: ______. Pedrinhas miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros. Rio de Janeiro: Mórula, 2019. p 17.

Não existe redenção para as grandes tragédias, mas a vingança sublime e a única forma de transcendência dos homens ao desmazelo da vida é transformar a má fortuna e a dor em beleza, civilização e arte.

15 de março de 2025

ARANTES, Ana Claudia Quintana. A morte é um dia que vale a pena viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2022. pp. 84-5.

O problema é que caminhamos ao lado de pessoas que pensam que são eternas. Por causa dessa ilusão, levam a vida de modo irresponsável, sem compromisso com o bom, o belo e o verdadeiro, distanciadas da própria essência. Pessoas que não gostam de falar ou pensar sobre a morte são como crianças brincando de esconde-esconde numa sala sem móveis: elas tapam os olhos com as mãos e acham que ninguém as vê. Pensam de um jeito ingênuo: “Se eu não olho para a morte, ela não me vê. Se eu não penso na morte, ela não existe.” E é essa ingenuidade que as pessoas praticam o tempo todo com a própria vida. Pensam que, se não olharem para o lixo de relação afetiva, o lixo de trabalho, o lixo de vida que preservam a qualquer preço, será como se o lixo não existisse. Mas o lixo se faz presente. Cheira mal, traz desconforto, traz doenças.

Elas podem pensar que, se não olharem para o Deus morto que cultivam em seus dogmas, esse Deus ficará bem-comportado para sempre. Não querem saber da verdade de um Deus morto que não se abre para o milagre do encontro sagrado. Essa gente vive meio morta para as relações de amizade, para o encontro com seus pares; é gente morta dentro da família e morta também na relação que têm com o sagrado em sua vida. Viver como mortos faz com que essa gente toda não consiga viver de verdade. Existem, mas não vivem. Há muitos ao nosso redor.

Eu os chamo de zumbis existenciais. Nas redes sociais, ao insistir em compartilhar violência e preconceito, ao persistir na vaidade de se manter infeliz por dentro e bobamente feliz por fora, as pessoas cultivam cada vez mais a própria morte sem se dar conta disso.

17 de fevereiro de 2025

SIMAS, Luiz Antonio. Coisa nossas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017. p. 63. E-book.

Um dia desses me pediram que falasse do meu carnaval inesquecível. Respondi que os melhores carnavais são aqueles dos quais não temos recordações, já que a essência da festa é o esquecimento. Carnaval bom é aquele do qual temos vaga, ou nenhuma, lembrança. O meu carnaval inesquecível, portanto, foi um desastre.