I- O PRESTIDIGITADOR
Este papel que se oferece virgem
ao bel-prazer da pena e tinta
é todo teu, só teu, como não é,
nem nunca foi, a tua vida.
A gozosa vertigem dos começos -
esse friozinho bom no estômago -
aqui encontra lastro, ainda que tênue,
na realidade tão incômoda.
E se esta página inaugural
negar-te a façanha de um verso,
um gesto rápido há de restaurar
a virgindade do caderno.
As vértebras flexíveis da espiral
não vão guardar nenhum vestígio
(como fazem as lombadas traiçoeiras)
deste pequeno infanticídio.
Somente a nova página primeira
testemunhou a recaída.
Tenta outra vez: Este papel, etc.
(Restam noventa e nove ainda.)
II- O ENCANTADOR DE SERPENTES
Por entre as linhas incautas da leitura
ideia insidiosa se insinua,
como se sugerisse um outro texto
mais vivo, extremo, e verdadeiro
de uma verdade esguia e peçonhenta
a recobrir de visgo tua página
já quase impenetrável -
felizmente
resta o recurso derradeiro:
Para. Volta atrás. Faz do palimpsesto
papel vulgar. Agora continua,
retoma a doce flauta da literatura.
III- O FUNÂMBULO
Entre a palavra e a coisa
o salto sobre o nada.
Em torno da palavra
muitas camadas de sonho.
Uma cebola. Um átomo.
Uma cebola ávida.
Entre uma e outra camada
nada.
Saltam sobre o abismo,
tomam o vazio de assalto.
De píncaro a píncaro
projetam-se, impávidas,
epifânicas, esdrúxulas,
teimosas e dançarinas.
O salto é uma dança,
a teima é uma doença.
Em torno da cebola
o ar é tenso de lágrimas.
______
BRITTO, Paulo Henriques. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. pp. 11-5.
25 de outubro de 2011
22 de outubro de 2011
MEANS, David. El Morro. The New Yorker, Fiction, August 29, 2011, p. 62.
A guy was out walking in the desert one day when he came upon a horse and a dog. The horse gave a whinny. Then another whinny. Then the dog barked at the horse, and the horse gave yet another whinny. As the man got closer to the animals, he found himself able to understand the particulars of this exchange. All this talk of running free, of eating wild grass, of drinking from freshwater lakes means nothing to me, the dog said. I'm waiting for you to talk about hunting a rabbit, about tearing meat from a bone, about blood and gore. And the horse said, I'm sick of hearing about blood and gore. I'm tired of your stories about sniffing out wild muskrats. I'm waiting to hear you talk of wild clover, of fresh juniper leaves. Then the man felt compelled to interject. Meat and grass. What's the difference? The function of each is to give you life. Without that function, you're just bones. Then both animals turned on the man. The dog tore at his legs, and the horse drove his hooves into his face. When the man was dead, they went back to their argument.
5 de outubro de 2011
FERRY, Luc. O que é uma vida bem-sucedida? Tradução de Karina Jannini. Rio de Janeiro: Difel, 2010. p. 14.
Permitir acreditar que poderíamos ter êxito em nossas vidas como o temos com um suflê ou uma carne assada não seria o efeito de uma pretensão desmedida, quando pensamos em tudo o que na nossa existência não depende em nada de nós, mas regressa aos acasos do nascimento, à pura contingência dos acontecimentos, à sorte ou aos infortúnios mais cegos?
1 de outubro de 2011
Criação do mundo
A passagem da infinita perfeição à imperfeita finitude, pela qual Deus, dizem os teólogos, condescende a já não ser tudo. É o que Valery chamava de diminuição divina:
passa-se do mais ao menos ("Deus e todas as criaturas são menos que
Deus só", escreve Simone Weil), do bem absoluto ao mal relativo. Criar,
para Deus, é retirar-se. É a única solução para o problema do mal que me
parece teologicamente satisfatória (mesmo que, filosoficamente, não o
seja de forma alguma). Deus, sendo todo o Bem possível, podia criar
apenas o menos bem que ele - só podia criar o mal. Por que o fez? Por
amor, responde Simone Weil: para nos deixar existir. O mundo nada mais é
que o vazio que daí resulta, como que o vestígio de um Deus ausente.
O vazio eu enxergo, mas não o vestígio.
______
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. [trad. Eduardo Brandão]. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 132-3.
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