22 de outubro de 2023

BRAGA, Rubem. "Sobre o amor, desamor". IN: Ai de ti, Copacabana. Sao Paulo: Círculo do Livro, 1985. p. 52.

Mas no meio de tudo isso, fora disso, através disso, apesar disso tudo – há o amor. Ele é como a lua, resiste a todos os sonetos e abençoa todos os pântanos.

Rio, setembro, 1957

9 de fevereiro de 2023

ECO, Umberto. Entre o verdadeiro e o falso. Entrelivros. São Paulo, ano 2, n. 16, p. 98, ago. 2006.

(...) não importa tratar-se de Hermes [Trismegisto] ou dos sábios de Sion, a diferença entre verdadeiro e falso não interessa aos que já começam pelo preconceito, pela vontade, pelo anseio de que lhes seja revelado um mistério, algum tumultuante prelúdio no céu ou no inferno.

8 de fevereiro de 2023

SALLES, João Moreira. En my hambre mando yo. Piauí, Rio de Janeiro, ano 17, n. 195, p. 9, dez. 2022.

      São muitas as razões pelas quais a maioria dos eleitores de maior poder aquisitivo votou em Bolsonaro. Razões ideológicas, classistas, raciais, econômicas, éticas, psicológicas. Embora seja impossível isolar um motivo único, convém lembrar que ao longo desses últimos quatro anos não faltaram pronunciamentos de certas lideranças do setor privado – de donos de redes varejistas a agentes do mercado financeiro, de pecuaristas e cultores a empresários do setor de transporte – sobre como, no novo governo, os negócios enfim se livraram das travas usuais do Estado brasileiro e supostamente puderam avançar. Bolsonaro era bom para o balanço mensal. Ameaças ao estado de direito, apologia da violência e da tortura, estímulo enérgico à posse e ao porte de armas, devastação ambiental, infiltração de dogmas religiosos nas políticas públicas, deboche dos sofrimentos causados pela pandemia, aviltamento da cultura e das artes, desprezo pela história e pelos direitos dos povos indígenas, desmonte da educação e do sistema nacional de ciência e tecnologia, charlatanismo médico, degradação dos valores cívicos do país - para esse segmento não desconsiderável das classes dominantes do país, para essa fatia das oligarquias nacionais, o conjunto dessas catástrofes públicas não se sobrepôs aos benefícios privados.

29 de outubro de 2022

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão seguido de A influência do jornalismo e Os jogos olímpicos. [trad. Maria Lúcia Machado]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 96.

      O índice de audiência é a sanção do mercado, da economia, isto é, de uma legalidade externa e puramente comercial, e a submissão às exigências desse instrumento de marketing é o equivalente exato em matéria de cultura do que é a demagogia orientada pelas pesquisas de opinião em matéria de política.

18 de outubro de 2022

GIKOVATE, Flávio. Reflexões que permanecem: uma compilação. São Paulo: MG Editores, 2017. p. 27.

      Muitas de nossa verdadeiras propriedades, como a inveja, a vaidade e a agressividade, são negadas e vão para o porão do inconsciente, de onde influenciam dramaticamente a conduta real da maior parte das pessoas, mesmo daquelas que se pretendem mais idealistas e despojadas.

17 de outubro de 2022

O ferrageiro de Carmona

Um ferrageiro de Carmona
que me informava de um balcão:
"Aquilo? É de ferro fundido,
foi a fôrma que fez, não a mão.

Só trabalho em ferro forjado 
que é quando se trabalha ferro
então, o corpo a corpo com ele, 
domo-o, dobro-o, até onde quero. 

O ferro fundido é sem luta,
é só derramá-lo na fôrma.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja.
 
Existe a grande diferença
de ferro forjado ao fundido;
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.
 
Conhece a Giralda em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?
 
Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas em outra língua.
Nada têm das flores de fôrma
moldadas pelas das campinas.
 
Dou-lhe aqui humilde receita,
ao senhor que dizem ser poeta:
o ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarreia.
 
Forjar: domar o ferro à força,
não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga."


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MELO NETO, João Cabral de. O ferrageiro de Carmona. IN: GULLAR, Ferreira (org). O prazer do poema: uma antologia pessoal. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014. p. 46-7.

13 de setembro de 2022

DUNKER, Christian Ingo Lens. "Psicologia das massas digitais e análise do sujeito democrático". IN: ABRANCHES, Sérgio et al. Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 116-7.

      Há situações psíquicas, no interior das quais deixamos de adquirir ou perdemos nossa capacidade de uso autônomo da razão, por exemplo, quando estamos apaixonados, hipnotizados ou sob funcionamento de massa. Nesses casos, suspendemos nossa crença na palavra como instância de mediação de conflitos, resistimos a escutar o outro e podemos nos lançar em atividades impulsivas, cujo objetivo é suspender o trabalho da lembrança e do pensamento (acting out). Tendemos a esquecer ou a evitar lembrar aspectos dolorosos de nós mesmos e de nossa própria história. A descrição clássica do estado de massa envolve o contágio de afetos, como os que se observa em uma multidão enfurecida, um exército em pânico ou uma assembleia de religiosos em comoção. No estado de massa somos tomados por uma espécie de amnésia e de falsa coragem, e dizemos e fazemos coisas que nunca nos autorizaríamos se estivéssemos sozinhos, com nossa consciência.

30 de março de 2020

Pessimismo

      “− Sabe a diferença entre um otimista e um pessimista?
      − ?
      − O pessimista é um otimista bem informado.”
      Essa adivinha, que nos veio da Europa Central, é, ela própria, pessimista. É por isso talvez que nos divirta: porque vemos nela uma espécie de círculo vicioso, sem que isso seja o bastante para refutá-la.
      O que é o pessimismo? É ver as coisas pelo pior (pessimus) ângulo, seja por considerar que há mais males do que bens, seja por pensar que os males vão se agravar. No sentido filosófico, o pessimismo se inclui na primeira categoria: é muito mais um pessimismo atual do que prospectivo (dado que Schopenhauer é o grande pensador do pessimismo, assim como Leibniz é do otimismo). No sentido corrente, o pessimismo tem mais a ver com a segunda categoria, isto é, com o futuro, que ele imagina pior que o presente. A velhice e a morte parecem lhe dar razão, pelo menos no caso do indivíduo, assim como o progresso e a religião, de uma maneira diferente, dão-na ao otimismo. Só faltava fazer do progresso uma religião, para que o pessimismo fosse definitivamente derrotado (pelo menos, é o que se podia crer). Daí as utopias e os diferentes messianismos que, desde o século XIX, não cessaram de nos oferecer novas razões para ter esperança... Infelizmente, só nos deram novas razões para desconfiar... dos otimistas.

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COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. [trad. Eduardo Brandão]. São Paulo: Martins Fontes, 2011. pp. 452-3.

2 de janeiro de 2020

A grande fome do Conde Ugolino

      Quando não houve mais prantos e gritos, sua descendência toda brilhando em ossos pelo chão, tirou enfim do bolso a cópia da chave, abriu a porta, e palitando dos dentes a doce carne da sua carne, desceu a longa escada da torre.

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COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 137.

15 de julho de 2019

O artista inconfessável

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil_
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

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MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 58.